A Comissão Nacional da Verdade entregará à presidente Dilma Rousseff seu relatório final em 10.dez.2014 recomendando a responsabilização criminal –e a punição– de aproximadamente 100 militares que ainda estão vivos e participaram de maneira direta de violações de direitos humanos durante a ditadura militar (1964-1985).
Em entrevista ao programa “Poder e Política”, do UOL, o coordenador da Comissão Nacional da Verdade, Pedro Dallari, 55 anos, declarou que esse desfecho “é uma decorrência natural da apuração” realizada durante 3 anos de trabalho.
Pedro Dallari no Poder e Política.
“Vamos indicar a necessidade da responsabilização. Como isto vai ser feito, se vai ser feito afastando-se a aplicação da Lei de Anistia, reinterpretando a lei, modificando a lei, isto é algo que caberá ao Ministério Público, ao Poder Judiciário e ao Legislativo”, declarou Dallari, que é advogado e professor da USP.
A publicação do relatório da Comissão Nacional da Verdade levará, argumenta ele, a uma interpretação da Lei da Anistia a partir de “casos concretos” por parte do Supremo Tribunal Federal, “com vítimas concretas, com autores concretos”.
O relatório será “impactante”, com dados sobre “estupros, uso de animais em tortura, um quadro de horrores, e a partir daí vai se instaurar uma situação muito constrangedora no país”. Para Dallari, “a sociedade vai se virar para as Forças Armadas, para a presidente, para o governo, esperando uma atitude. E o que é pior, como esses atuais comandantes [das Forças Armadas] vão deixar seus postos, eles deixarão uma bomba armada para seus sucessores, que terão que lidar então com esse quadro muito difícil de administração”.
Embora o relatório final vá nomear os responsáveis por violações dos direitos humanos, “essa identificação dos autores não significa acusação de que eles sejam responsáveis, porque isso depende do devido processo legal”.
Mas os relatos serão todos detalhados. “À luz do direito internacional dos direitos humanos essas graves violações são crimes contra a humanidade e não há anistia”.
QUEBRA DE HIERARQUIA
O coordenador da comissão também chama a atenção para a dificuldade que a foi enfrentada nos últimos 3 anos, com muitos oficiais das Forças Armadas resistindo e preferindo não colaborar. Dallari cita um fato ocorrido na sexta-feira (14.nov.2014) da semana passada, quando o Ministério Público descobriu que um hospital do Exército, no Rio, ocultou documentos da época da ditadura –e também houve um trabalho para investigar quem eram o integrantes da CNV.
“Essa situação é muito grave e deve ser apurada. Ou essa ocultação de documentos obedeceu a ordem superiores, o que eu realmente não creio, ou houve quebra de hierarquia e desobediência ao que seria uma orientação do [comandante do Exército], Enzo Peri”, declara Dallari.
“Se o Ministério da Defesa e o comandante do Exército, diante desse quadro muito grave, não tomarem providência, isto será visto mais do que como inação, como cumplicidade. Não há razão para as Forças Armadas, na sua atual composição, se acumpliciarem com condutas que não praticaram”.
A seguir, trechos da entrevista:
UOL – A Comissão Nacional da Verdade apurou que 421 pessoas foram mortas ou desapareceram pelas mãos do regime militar. A Comissão sobre Mortos e Desaparecidos Políticos tem uma lista um pouquinho menor, 362 nomes. Tem um dossiê que foi preparado pelos familiares das vítimas que falou em 436 mortos e desaparecidos. Por que ocorre essa diferença nesses números?
Pedro Dallari – Esse número de 421 nomes não é definitivo. Ainda estamos fazendo uma triagem e creio que vá subir um pouco e ficar na faixa dos 430 nomes. A diferença se deve a critérios de comprovação e de documentação. Por exemplo, na lista dos familiares aparece uma pessoa que faleceu no exterior vítima de um acidente de automóvel, ou de motocicleta. Nós não consideramos esse tipo de situação como uma morte que decorre diretamente das graves violações de direitos humanos. Mas desde que os critérios fiquem explicitados, essa diferença não é relevante. No caso da Comissão de Mortos e Desaparecidos, esse número é um pouco menor porque envolveu limitações com relação ao prazo dos pedidos.
Entregue o relatório final da Comissão Nacional da Verdade, em 10 dezembro, esse será o número oficial de mortes e desaparecidos por conta do regime militar?
Sem dúvida. Como a Comissão Nacional da Verdade é um órgão de Estado, os números que ela apresentar terão esse caráter oficial.
Nesta terça-feira, 18 de novembro de 2014, completam-se 3 anos da sanção da lei que criou a Comissão Nacional da Verdade. Nesse período, como o sr. definiria a relação que os integrantes da Comissão tiveram com as Forças Armadas?
Uma relação difícil. Desde o começo ficou claro que, embora as Forças Armadas não fossem se opor à Comissão Nacional da Verdade, a disposição para uma colaboração efetiva não seria grande. Não podemos reclamar do atendimento e do relacionamento que nós tivemos por meio do Ministério da Defesa, que foi bom. Realizamos visitas aos locais de graves violações com abertura, com acesso a todas as instalações que nós quiséssemos ver. Isto funcionou bem.
Mas tivemos dificuldades na obtenção de documentos. Houve documentos que só foram entregues a nós agora, no final da atividade de apuração. E há a situação, que para nós não está suficientemente comprovada, em que as Forças Armadas alegam que um grande número de documentos foi destruído. Nós não temos nenhuma evidência dessa destruição e os documentos não aparecem. E agora, recentemente, houve o episódio no Hospital Central do Exército [no Rio], onde documentos que eram dados como não existentes ou como desaparecidos estavam numa sala secreta.
O que aconteceu no Hospital do Exército?
É um episódio muito recente, muito grave. Em setembro, a Comissão Nacional da Verdade, acompanhada de membros da Comissão da Verdade do Rio, fez uma visita ao hospital. Havia denúncias de que pessoas foram detidas lá e, eventualmente, torturadas.
No caso do engenheiro Raul Amaro [1944-1971], há evidências muito sólidas de que ele foi torturado dentro do hospital. Nós queríamos o prontuário médico dele.
Fomos ao hospital, fizemos a visita e não conseguimos localizar documentos. O diretor do hospital disse que não tinha documentos que não aqueles que estavam nos arquivos, que eram mais recentes. Disse que que essa documentação não existiria mais e que ele não saberia onde estariam.
E posteriormente?
Graças a uma denúncia anônima, o Ministério Público Federal fez uma diligência na última sexta-feira, dia 14 de novembro [de 2014], no hospital e descobriu, em salas que não eram aquelas que deveriam estar, prontuários médicos de anos referentes à ditadura e outros documentos que deveriam estar no Instituto Médico Legal do hospital. E [descobriu] um dossiê dos membros da Comissão Nacional da Verdade e da Comissão Estadual da Verdade, com fotografias, demonstrando que, previamente à nossa visita, eles fizeram uma investigação. Revelou a ocultação de documentos, o que é um absurdo tratando-se de uma solicitação feita por um órgão de Estado. E uma investigação sobre os membros da Comissão feita pelo Exército que não se justifica.
Que informações continham esses dossiês sobre os integrantes da Comissão Nacional da Verdade?
Recebi essa informação do Ministério Público Federal. O procurador da República Antonio Cabral, muito preocupado, me ligou e disse: “Descobrimos uma sala em que havia um cofre, uma pasta com documentos sobre Raul Amaro”. Não o prontuário médico dele, mas outros documentos, e também uma pasta com informações sobre os visitantes [da Comissão], com fotografias e biografias.
O Ministério Público conseguiu identificar a origem desse dossiê?
Não. Ele só conseguiu localizar porque era uma operação de busca e apreensão. Ele apreendeu o dossiê e vai agora, pelo o que eu soube, pedir a instauração de um inquérito policial.
Foi ouvido o diretor do hospital?
Consta que o diretor teria alegado completo desconhecimento sobre tudo que foi encontrado.
Inclusive a sala onde estavam os documentos?
Inclusive sobre a sala dos documentos. Eu não tenho nenhum motivo para achar que isto tenha decorrido de uma ação coordenada dos comandantes militares. Mas o fato de que tenha ocorrido a ocultação de documentos da Comissão Nacional da Verdade e a investigação dos membros da Comissão é bastante grave e eu espero que o Ministério [da Defesa] tome providências.
Qual é o volume de documentos encontrados nessa sala?
Nesta sala em que foi achado o dossiê da Comissão Nacional da Verdade havia alguma documentação de Raul Amaro, mas não o prontuário. Em outra sala, chamada de sala de contingência, e que não era a sala dos arquivos do hospital, foram localizados em sacos plásticos um conjunto de prontuários que envolveriam anos em que houve graves violações de direitos humanos.
Esse material foi apreendido?
Foi todo apreendido. E o fato de que ele estava separado mostra que alguma preocupação havia por parte dos militares.
Qual é o volume aproximado?
Número eu não sei avaliar. Mas somando os diversos anos referentes ao material encontrado, eu acredito que dê um número maior que 6 ou 7 anos, bem no período da repressão.
Essa atitude pode ter sido de alguém do próprio hospital e não necessariamente de algum comandante, ao seu juízo?
O próprio diretor do hospital é um general, é um oficial graduado. O que não creio é que tenha partido dos comandantes ou do comandante do Exército. Não tenho nenhum motivo para achar que o general Enzo Peri tenha qualquer relação com isso. Agora, a minha avaliação é a seguinte. Sinto nas Forças Armadas um certo autismo por parte dos seus comandantes. Periodicamente a Comissão Nacional da Verdade divulga seus relatórios preliminares de pesquisa, apontando fatos muito graves que ocorreram no período da ditadura militar. Caso Riocentro, caso Rubens Paiva, caso da Casa da Morte de Petrópolis, com provas, depoimentos testemunhais, evidências localizadas. E a reação do comando das Forças Armadas tem sido um tanto quanto autista. Eles não reagem. Não reagem. Sempre que há alguma informação, a imprensa vai procurar o outro lado, vai procurar saber qual é a posição, eles dizem que não comentam as atividades da Comissão. Eu tenho receio de que isto tenha estimulado em escalões inferiores uma certa resistência a apoiar a Comissão Nacional da Verdade. E aí podemos ter um evento grave, embora isolado, como esse do Hospital do Exército.
Essa atitude por parte do comando das Forças leva a atitudes como essa no Hospital do Exército do Rio?
Como essa, como o episódio em que alguns oficiais da reserva se negaram a ir depor, um deles até escreveu no termo de convocação que se recusava a depor: “Não colaboro com o inimigo, virem-se”. Uma reação que obviamente não era orientada pelo comando, mas o fato de que o comando se mantém inerte cria espaço para esse tipo de reação.
O sr. citou o comandante Enzo Peri, do Exército. Ele, em fevereiro de 2014, disse que em todas as requisições de informação sobre o regime militar teriam de ser encaminhadas a ele, impondo, na prática, um controle centralizado do fluxo de informações. Esse general que comanda o hospital do Rio de Janeiro…
General Vitor César.
…De maneira deliberada ou inadvertida, mantém esses documentos lá, que eram documentos que a Comissão da Verdade estava procurando. Mas o comandante do Exército pediu que tudo fosse enviado a ele. Houve quebra de hierarquia de alguém?
Sem dúvida. Por isso que essa situação é muito grave e deve ser apurada. Ou essa ocultação de documentos obedeceu a ordem superiores, o que eu realmente não creio, ou houve quebra de hierarquia e desobediência ao que seria uma orientação do Enzo Peri.
Nós aguardamos que entre hoje [segunda-feira, 17.nov.2014] e amanhã [terça-feira, 18.nov.2014] o Ministério da Defesa tome providências. Se o Ministério da Defesa e o comandante do Exército, diante desse quadro muito grave, não tomarem providência, isto será visto mais do que como inação, como cumplicidade. Não há razão para as Forças Armadas, na sua atual composição, se acumpliciarem com condutas que não praticaram.
Por que os atuais comandantes das Forças não têm uma atitude mais proativa?
Confesso que não tenho resposta. A Comissão foi criada pelo Congresso Nacional, com sanção da presidente da República, com a presença no seu ato de instalação dos ex-presidentes da República do Brasil, dos comandantes militares, do ministro da Defesa, dos ministros do governo. Seria razoável que os comandantes militares reagissem diante disso. E hoje está mais que demonstrado não só que houve graves violações de direitos humanos, mas que essas violações não foram produtos da ação isolada de alguns psicopatas, casos fortuitos, foram produto de uma atividade planejada, sistemática. Caberia nesse momento, aos comandantes, reconhecer isto. É o que nós pedimos, que eles reconheçam que houve essas graves violações. Que houve protagonismo nas Forças Armadas, de tal maneira que se encerre, com a Comissão Nacional da Verdade e com esse reconhecimento por parte das Forças Armadas, se encerre definitivamente este período da história do Brasil.
A criação da Comissão Nacional da Verdade é obra da atual administração federal, comandada pela presidente Dilma Rousseff. Por outro lado, a atitude, talvez, tímida da presidente em cobrar dos seus comandantes das Forças uma atitude mais proativa os leva também a agir dessa forma. Há um paradoxo?
A presidente tem dito, com frequência, que vai aguardar o relatório da Comissão Nacional da Verdade e em função daquilo que for recomendado vai tomar atitudes. E, em 10 de dezembro, nós faremos essa entrega à presidente Dilma.
Essa data de 10 de dezembro é um marco que pode significar duas coisas diferentes.
Quais?
Uma delas é a seguinte. Se os militares, antes disso, tendo em vista tudo que foi apurado, se antecipam com o reconhecimento do que houve por parte delas, [eles] convertem esse 10 de dezembro numa data de celebração. Ou a data pode ser o contrário, não haver nada até lá, as Forças Armadas não reconhecerem o papel que tiveram nessas graves violações de direitos humanos, tortura, morte, execução, desaparecimentos forçados, ocultação de cadáveres.
O relatório vai ser impactante, com dados sobre estupros, uso de animais em tortura, um quadro de horrores, e a partir daí vai se instaurar uma situação muito constrangedora no país. Vão ser apresentados dados e a sociedade vai se virar para as Forças Armadas, para a presidente, para o governo, esperando uma atitude. E o que é pior, como esses atuais comandantes vão deixar seus postos, eles deixarão uma bomba armada para seus sucessores, que terão que lidar então com esse quadro muito difícil de administração.
Há risco, se os militares mantiverem essa posição, de voltar aquele discurso de que a Comissão da Verdade é revanchista, que quer mexer em coisas do passado que deveriam ser deixadas para lá, porque a Lei da Anistia está aí e não se deve falar nisso?
Não creio, porque a Comissão conquistou ao longo da sua atuação uma credibilidade muito grande que a imuniza contra esse tipo de avaliação.
Dou um exemplo de por que isso não tem aderência. Quando fizemos a apuração sobre o caso do ex-presidente Juscelino Kubistchek [1972-1976], se ele teria sido assassinado ou não e chegamos à conclusão de que não houve atentado contra o ex-presidente Juscelino Kubistchek.
Foi um acidente.
Ele morreu num acidente. Na rodovia. E era algo que isentava os militares, porque a suspeita que havia era que ele tivesse sido assassinado por militares no contexto daquela chamada Operação Condor que reuniu militares do Brasil, da Argentina, do Chile, do Uruguai. Mesmo a Comissão tendo comprovado que isso não ocorreu, isso não nos levou a ocultar essa informação. Pelo contrário, fizemos da mesma maneira que nos outros casos, uma audiência pública para relatar o resultado da apuração e mostrar que, a nosso critério, não houve assassinato e o Juscelino morreu num acidente de automóvel.
Isentando, no caso, o regime militar.
Isentando o regime militar. Tanto é que a única ação judicial movida contra mim como coordenador da Comissão Nacional da Verdade foi uma ação, já julgada improcedente, promovida pela Câmara Municipal de São Paulo. Porque a sua Comissão da Verdade, que entende que Juscelino foi assassinado, queria proibir a Comissão Nacional de divulgar o seu relatório, imagine só. E o juiz, obviamente, afastou sem julgamento do mérito, considerou improcedente a ação.
A Comissão teve muita tranquilidade, num episódio que seria de grande relevância, de dar uma versão que favoreceu os militares. Por isso a tentativa de descaracterizar a isenção da Comissão não será bem sucedida.
O Estado brasileiro deu as condições políticas necessárias para a atuação da Comissão Nacional da Verdade?
Do ponto de vista da comparação com as cerca de 40 Comissões da Verdade que funcionaram no mundo, sim. Ela foi criada por lei, o que dá à Comissão uma autoridade maior do que aquelas criadas por ato do presidente da República. E não houve ingerência do Poder Executivo. Em nenhum momento, nesses 3 anos de aprovação da lei, dois anos e meio de funcionamento da Comissão, houve interferência, o que foi muito positivo. A dificuldade que nós temos, e isso nos frustra, é com a documentação das Forças Armadas. Nós queríamos muito as chamadas folhas de alterações, que registram a vida funcional dos militares. Agora conseguimos receber, não haverá tempo para o processamento adequado dessas informações para o nosso relatório. Mas a obtenção dessas folhas é um legado que a Comissão deixa, porque todo o arquivo vai para o Arquivo Nacional.
Haverá um processo de digitalização desse material para que as pessoas tenham mais fácil acesso de qualquer parte remota do país?
Sim. Nós estamos digitalizando e vamos passar para o Arquivo Nacional o nosso arquivo digitalizado. Agora, há muitas informações que estão sujeitas a sigilo. As próprias folhas de alteração. Portanto, o acesso a elas será controlado, não por força da Comissão, mas pela lei. E aí haverá algum tipo de restrição, mas a ideia é que a pelo menos, a curto prazo, a maior parte desse material esteja disponível e uma grande parte, a médio prazo, esteja totalmente disponível.
Por que as folhas de alteração ainda ficam sujeitas a sigilo se muitas devem ter mais de 25 anos?
Nós temos tido cuidado porque elas dizem respeito à intimidade das pessoas. A folha de alteração tem toda a vida funcional de uma pessoa. Houve um caso da viúva de um general que moveu uma ação contra a Comissão pedindo que fosse negado a entrega das folhas de alteração, mas o Judiciário não aceitou.
Argentina, Uruguai e Chile foram países da América Latina que adotaram condutas incisivas para punir agentes do Estado responsáveis por crimes em suas ditaduras. No Paraguai foi montada uma comissão, mas não se puniu militares envolvidos. No Brasil, onde o debate ainda está aberto, qual será o modelo para o qual se vai convergir?
Trabalho a dimensão da responsabilidade em dois planos. Um é o que eu chamo de responsabilidade institucional, que é a política e que é a necessidade das Forças Armadas reconhecerem que houve graves violações de direitos humanos no Brasil, o que até hoje eles não fizeram. As Forças Armadas não negam mais, como negavam antes, mas não reconhecem explicitamente. E, mais do que isso, reconhecerem o protagonismo que tiveram. Isto é uma decisão política que já devia ter sido tomada.
Por quem?
Pelas Forças Armadas. Resta saber em que estágio de relação de comando a Presidência da República deve interferir, ou o Ministério da Defesa, mas a responsabilidade em última instância é das Forças Armadas.
Seu juízo é que a Presidência da República e o Ministério da Defesa deveriam interferir para que os comandos das Forças tomassem atitude?
Isso poderá ocorrer após a divulgação do relatório. As Forças Armadas poderiam se antecipar a isso, tal o volume de evidências. E eu quero crer que isso seja possível até 10 de dezembro.
Será que eles não temem que, no momento em que os comandantes das Forças vêm a público e admitem violação de direitos humanos e sua responsabilidade institucional, eles abram espaço para que ações sejam ajuizadas contra os que ainda estão vivos, ainda que na reserva, para serem responsabilizados criminalmente?
Não. Pelo simples fato que essas ações já estão sendo ajuizadas. O Ministério Público já vem propondo ações, propôs no caso Rubens Paiva, propôs no caso Riocentro, e agora, inclusive, o Supremo Tribunal Federal voltará a examinar essa situação a partir desses casos concretos.
E aí nós entramos na segunda dimensão da responsabilidade, a responsabilidade individual, que envolve a discussão sobre a Lei de Anistia. A Comissão vai recomendar que haja a responsabilização daqueles que deram causa a essas graves violações, porque é uma decorrência natural da apuração que ela fez. A Comissão não é um órgão técnico-jurídico, embora muitos de nós sejamos da área do direito, ela não é um órgão que tenha essa natureza técnica. Portanto nós vamos indicar a necessidade da responsabilização. Como isto vai ser feito, se vai ser feito afastando-se a aplicação da Lei de Anistia, reinterpretando a lei, modificando a lei, isto é algo que caberá ao Ministério Público, ao Poder Judiciário e ao Legislativo. É um debate que já existe na sociedade, as ações já estão colocadas e é inevitável que isto venha ocorrer.
Até o momento, o Supremo Tribunal Federal vem dizendo que a Lei da Anistia deve ficar do jeito que está. Seria necessária uma mudança grande por parte do Congresso para sobrestar essa decisão do Supremo.
A decisão do Supremo Tribunal Federal foi tomada em uma análise em tese da lei, discutindo a validade ou não da lei. O Supremo entendeu que ela era válida.
Agora, o alcance efetivo da lei, no meu entendimento jurídico, vai acabar sendo feito pelo Supremo Tribunal Federal em casos concretos, com vítimas concretas, com autores concretos.
E a partir do momento em que o relatório da Comissão Nacional venha a público, sistematizando um volume de informações que reflete um quadro muito grave, haverá uma certa cobrança da sociedade.
A divulgação, no dia 10 de dezembro, da íntegra dos achados da Comissão Nacional da Verdade pode acabar funcionando como um fator propulsor da discussão sobre a Lei da Anistia?
Sem dúvida. O relatório vai identificar as vítimas e vai identificar autores. Essa identificação dos autores não significa acusação de que eles sejam responsáveis, porque isso depende do devido processo legal, mas a própria lei diz que nós devemos indicar autoria e isto será feito.
E ao indicar a autoria, o relatório final recomendará, explicitamente, que é necessário abrir o processo criminal e que devem ser punidos, se for encontrada a culpa?
Sim, sem dúvida. Isso vai estar explícito. A recomendação da responsabilização criminal civil e administrativa.
Haverá um interpretação sobre como isso se relaciona com a Lei da Anistia?
Não. O cuidado que nós vamos tomar é dizer o seguinte. Deve-se afastar qualquer obstáculo que possa ser identificado, na Lei de Anistia ou qualquer outra legislação. À luz do direito internacional dos direitos humanos essas graves violações são crimes contra a humanidade e não há anistia. Mas nós queremos evitar a discussão técnico jurídica, se tem que reinterpretar a lei, se tem que revogar, porque essa é uma discussão do meio jurídico.
E que caberá ao Supremo
Caberá ao Supremo Tribunal.
Quantos autores de violações de direito humanos serão identificados no relatório?
Mais de uma centena, certamente.
Vivos?
Uma parte sim, principalmente os mais jovens, que tiveram uma conduta relacionada à repressão. Muitos deles estão vivos porque era mais jovens na época.
Entre os vivos que poderão ser responsabilizados criminalmente há mais de 100?
É provável que sim. Nós ainda não fechamos. Haverá uma reunião da Comissão na quarta-feira [19.nov.2014] em São Paulo para fazer uma análise dessa lista. Com muito cuidado, porque mesmo que não seja uma acusação que implique em responsabilidade, porque a Comissão não tem essa prerrogativa, sabemos que colocar o nome numa lista dessa tem implicação. Estamos separando, inclusive, os graus de responsabilidade. Há, por exemplo, aqueles que são responsáveis, como os ex-presidentes da República do período militar, pelas decisões políticas e institucionais que geraram essas graves violações como a política de Estado. Por exemplo, o Serviço Nacional de Informações, o famigerado SNI, que foi uma espécie de central de terror, era um órgão que funcionava no gabinete da Presidência da República. Era ligado ao gabinete da Presidência da República diretamente, portanto os presidentes têm responsabilidades.
Todos os presidentes da República do período serão considerados responsáveis?
Institucionalmente serão considerados responsáveis, pelo controle que tinham da principal estrutura de comando da repressão. Os ministros militares, a mesma coisa, por quê? Porque nos gabinetes dos ministros militares funcionavam os centros de informação. O Centro de Informação do Exército, o Centro de Informação da Marinha e o Centro de Informação da Aeronáutica. Esses centros de informação foram as grandes centrais em cada Arma que, relacionando-se com o serviço nacional de informações, conduziram a atividade de repressão.
Temos aí também, descendo mais, os governadores de Estado e os prefeitos de capitais e cidades consideradas de segurança nacional que tinham muito contato com os órgãos de repressão…
Mais aí é um pouco mais complicado porque para a Comissão é muito importante que a apuração da vinculação decorra de um nexo causal evidente. Abaixo desses que tiveram controle político, nós identificamos aqueles que tiveram o controle pela gestão de estruturas de repressão. Aqueles que chefiaram os Doi-Codis [Destacamento de Operações de Informações do Centro de Operações de Defesa Interna], chefiaram Dops [Departamento de Ordem Política e Social], chefiaram estruturas que tiveram realmente uma atuação comprovada na tortura, na execução de pessoas. Mesmo que essas pessoas não tenham participado diretamente da tortura, ao controlarem uma estrutura cuja finalidade específica era torturar e matar, há uma responsabilidade objetiva.
Caso, por exemplo, do general [José Antônio Nogueira] Belham, que dirigiu o Doi-Codi do Rio de Janeiro de 70 para 71, durante um período em que comprovadamente 8 pessoas que foram executadas ou desapareceram passaram por lá, inclusive o ex-deputado Rubens Paiva. Então ali há uma responsabilidade evidente, porque se ele era o chefe daquela instalação que era destinada àquela finalidade, esta responsabilidade está comprovada.
E no caso de empresários e empresas que colaboraram ostensivamente com a ditadura?
Aí nós fazemos uma distinção, também muito cuidadosa, entre o apoio que houve ao regime e aquilo que é o objeto da Comissão, que são as graves violações dos direitos humanos.
Empresários que deram dinheiro para a Oban [Operação Bandeirante], por exemplo?
Isso, aí sim. Está certo. Porque aí é uma colaboração não só com a ditadura, mas com as graves violações. Nós iniciamos essa apuração, há um dos textos do relatório que vai tratar disso, mas é uma das áreas da nossa investigação que nós, na verdade, avançamos não tanto quanto nós gostaríamos. Ficará para a continuidade.
Haverá um capítulo?
Haverá um texto, um capítulo que trata justamente disso, mas que nós mesmos reconhecemos que tem que ter aprofundamento. Há algumas áreas, e a gente não tem nenhum problema de reconhecer isso, em que avançamos menos.
Uma coisa que nos frustra enormemente diz respeito à localização dos corpos de desaparecidos políticos. Nós calculamos hoje em cerca de 200 os desaparecidos políticos. Cerca de 30, além desses, foram localizados desde que constaram como desaparecidos, mas apenas 1 foi localizado no período de funcionamento da Comissão Nacional da Verdade. E isto está diretamente associado à ausência de documentos das Forças Armadas, porque um número significativo, mais de 70, desapareceram na Guerrilha do Araguaia. Quem sabe onde estão os corpos são as Forças Armadas e nós não conseguimos essa informação.
Ou seja, cerca de 200 desaparecidos durante o regime militar continuarão desaparecidos?
Continuarão desaparecidos. E isso para nós é a maior frustação. Houve uma decepção muito grande. O esforço foi brutal da nossa parte, mas nós não tivemos êxito em avançar mais nessa localização.
Terminado o trabalho da Comissão Nacional da Verdade, em 10 dezembro de 2014, entrega-se o relatório. Quem, a partir da entrega do relatório, cobrará consequências a partir do que achou a Comissão Nacional da Verdade?
A rigor, a sociedade, porque, a Comissão Nacional da Verdade se extingue. Em 10 de dezembro nós entregamos o relatório e a lei fixou a nossa data de extinção, 16 de dezembro. Então, a partir de 16 de dezembro, nós seremos história.
Que recomendação o sr. faria para o Estado brasileiro?
Vamos propor que haja a criação, assim como houve no Uruguai –no Uruguai teve até um nome poético, a Secretaria do Passado Recente–, de um órgão que possa dar continuidade, em bases permanentes, ao trabalho da Comissão Nacional da Verdade. Talvez não com as mesmas prerrogativas.
No âmbito da Presidência, do ministério?
Da Presidência, ou da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, como já é a Comissão de Mortos e Desaparecidos, ou do Ministério da Justiça, como é a Comissão de Anistia. Uma Comissão de seguimentos seria uma medida importante, porque há necessidade de haver um órgão que centralize a continuidade dessas iniciativas que a Comissão desenvolveu e são muito positivas.
O momento é um pouco conturbado do ponto de vista político. A eleição de 2014 foi muito dura. Há um grande escândalo de corrupção na praça. E o aspecto econômico também vai requerer cuidados por parte da Presidência da República. Nesse ambiente, fica muito difícil para a presidente comprar mais uma briga e tentar empurrar para frente as recomendações da Comissão Nacional da Verdade?
Não tenho condições de avaliar esse contexto todo. Agora, que a Comissão Nacional da Verdade está propondo quando reivindica que as Forças Armadas reconheçam as graves violações que existiram, e quando apresenta recomendações no sentido do aprofundamento das investigações que ela mesmo conduziu, ela está em sintonia com esse sentimento geral da sociedade que clama pelo quê? Por transparência, por responsabilidade dos órgãos públicos, por prestação de contas, aquilo que os norte-americanos chamam de “accountability”.
O que nós estamos querendo que as Forças Armadas façam é prestar contas. São instituições do Estado. Assim como a sociedade clama para que a Petrobras preste contas, para que o governo preste contas. Portanto, sou mais otimista, identifico nesse movimento que a Comissão Nacional da Verdade está fazendo em relação às Forças Armadas uma enorme sintonia com o movimento que existe hoje na sociedade em relação ao Estado brasileiro.
O sr. acredita que a presidente Dilma vai se engajar para ajudar a reinterpretar a Lei da Anistia ou empurrar adiante esses processos de criminalização de quem for apontado como violador dos direitos humanos?
Ela não vai, certamente, e nem deve, se enfronhar numa discussão que cabe ao Poder Judiciário, cabe ao Ministério Público, e eventualmente ao Parlamento. Mas na medida em que a Comissão Nacional da Verdade apresente o seu relatório isto estará presente no domínio da sociedade. É algo que a própria sociedade vai colocar em pauta.
Gostaria muito que as Forças Armadas tomassem essa iniciativa e tivéssemos esse avanço até antes de 10 de dezembro. Para que em 10 de dezembro, o dia dos Direitos Humanos, a data m que em 1948 foi celebrada a Declaração Universal dos Direitos Humanos, nós tivéssemos uma celebração. Porque a lei fala que a Comissão Nacional da Verdade deve procurar trabalhar para promover a reconciliação. A reconciliação viria desse reconhecimento pelas Forças Armadas de que houve, realmente, fatos muito graves e isto encerraria esse período da história. Se não vier antes, virá depois, é inevitável. Pode levar uma semana, um mês, um ano, mas virá.
A impressão que se tem é que é um problema geracional. Enquanto houver oficiais que já estavam nas Forças à época da ditadura, vai ser difícil isso acontecer. O sr. concorda?
É um argumento ponderável, mas, por outro lado, nas visitas que fizemos às instalações militares –e nós fomos acompanhados por muito oficiais que ouviram as vítimas–, eu vi, no rosto daqueles jovens oficiais, um constrangimento tão grande, porque eles não participaram disso, não deram causa a isso.
Os atuais comandantes deveriam refletir. E um gesto deles tiraria desses jovens oficiais esse legado que eles têm que carregar, que é uma espécie de corresponsabilidade institucional pelas graves violações que existiram.
Ao mesmo tempo que eu reconheço, até por esse aspecto geracional e até afetivo, dificuldade nos comandantes atuais, por outro lado vejo neles a possibilidade de adotar um gesto que terá uma importância enorme no sentido de liberar as Forças Armadas desse passado.
As Forças Armadas têm recebido apoio da sociedade brasileira. Entre os maiores investimentos do Estado brasileiro estão investimentos na Forças Armadas. Por exemplo, o submarino de propulsão nuclear. É o maior investimento individual que existe do Estado brasileiro hoje em desenvolvimento de tecnologia.
O investimento no projeto que a Embraer está desenvolvendo para os aviões que vão substituir os antigos Hercules. A renovação da frota de jatos com a compra dos jatos Gripen suecos.
Se as Forças Armadas querem merecer este apoio da sociedade e serem credoras, e devem ser, elas têm que ter credibilidade, têm que ter respeitabilidade, e por isso não podem ter uma conduta em relação a graves violações que não revele a transparência necessária. Entendo que é muito importante que as Forças Armadas liquidem esse passivo que existe da vinculação às graves violações, para que possam transitar com mais tranquilidade num futuro onde elas são muito importantes para o Brasil.
Há muitas manifestações de rua ocorrendo desde o processo eleitoral e parcela dos manifestantes pede a volta da ditadura militar. Existe na sociedade hoje esse tipo de sentimento, na sua avaliação, de maneira enraizada?
Não acredito. Essa demanda aparece mais numa conduta quase patética de alguns do que propriamente como expressão organizada da sociedade. Não identifico isso no Brasil como existem em outros países.
No Chile, por exemplo, vejo ainda largos setores sociais com uma certa nostalgia do pinochetismo. Não vejo isso no Brasil. As manifestações são quase patéticas. Isso no Brasil está sepultado.
A Comissão Nacional da Verdade ajudou um pouco isso, apresentando dados, fatos e informações sobre o horror que foi a ditadura. Se alguém pudesse ter nostalgia, deixou de ter. Porque é óbvio que a democracia tem suas dificuldades, mas como já dizia Winston Churchill (1874-1965), pode ser o pior dos sistemas, com exceção de todos os outros.
O sr. é professor, mas teve também uma vida muito ativa político-partidária. Foi do PT. Depois, filiou-se ao PSB –partido ao qual ainda continua filiado. O sr. pretende retomar sua atividade político-partidária após a participação na Comissão Nacional da Verdade?
De maneira nenhuma. Considero que foi uma fase muito importante da minha vida. Dediquei-me a ela com muita intensidade. Fui vereador em São Paulo, fui deputado estadual por duas legislaturas, exerci funções no Poder Executivo, na gestão da prefeita Luiza Erundina. Sou muito realizado com relação a isso. Encerrada essa atividade da Comissão Nacional da Verdade, volto à Universidade de São Paulo, onde sou professor do Instituto de Relações Internacionais e diretor, e à minha atividade de advogado.
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