no País. Quem explica são dois dos autores do livro “Depoimentos para a História – A resistência à ditadura militar no Paraná”, lançado na semana passada, e que reúne relatos de 165 pessoas que combateram o arbítrio e foram vigiados, perseguidos, presos e torturados entre 1964 e 1985 no Estado.
O ex-preso político e militante dos Direitos Humanos, Antonio Narciso Pires de Oliveira, a jornalista e filósofa Silva Calciolari – responsáveis junto com o historiador Fábio Bacila Sahd pela obra – contam, por exemplo, que só no Paraná, quatro mil pessoas foram presas e dessas, mais de mil pessoas torturadas no Estado no período. E que assim como em outras regiões do País, o golpe teve o apoio de amplos setores da sociedade civil – incluindo aí empresários, líderes religiosos e da própria população. Em entrevista ao Bem Paraná, Narciso Pires e Silvia Calciolari explicam como isso aconteceu, e como cinquenta anos depois, a história dos “Anos de Chumbo” ainda está por ser adequadamente contada.
Bem Paraná – No plano nacional, sabe-se que o golpe de 64 teve o apoio de empresários e outros setores significativos da sociedade civil. No Paraná também aconteceu isso?
Narciso Pires – Da mesma forma. Você tem o exemplo de párocos da Igreja Católica no interior, convocando manifestações, cercando sindicatos rurais. Nós temos um caso de um sindicato em Peabiru que foi cercado, com ameaças de incendiar. Então você tem, na verdade, sim no Paraná, todo o apoio desse grupamento.
Silvia Calciolari – A gente até entrevistou um padre de Maringá que na homilia conclamava a população para ficar atenta. Até recebeu uma advertência da diocese de Maringá, por estar fazendo sermões muito engajados contra a ditadura. Ele era professor no (colégio estadual) Gastão Vidigal. O movimento estudantil era muito forte lá. Ele foi advertido pela diocese por estar exagerando no conteúdo político.
BP – Houve marchas “da família” em apoio ao golpe no Paraná?
Silvia Calciolari – Em muitas cidades do interior, principalmente.
Narciso Pires – Interessante observar que a Igreja Católica só vai mudar sua posição na metade dos anos 60 para frente, depois do golpe. Depois do concílio do Vaticano. Dom Paulo Evaristo Arns, que é um ícone na Igreja Católica na luta contra a ditadura militar. Em 1964, ele sai de São Paulo para abençoar as tropas do (general) Mourão Filho que se deslocavam de Juiz de Fora. A história da escravidão no Brasil mostra que a Igreja Católica não só apoiou como tinha fazendas de escravos. As pessoas, eu percebo, que têm medo de tocar nesse assunto. Da mesma maneira, do golpe, a história é a história. Se você não a relata como tem que ser, ela vai se projetar distorcida. A Igreja Católica foi apoiadora do golpe.
BP – E o empresariado paranaense?
Narciso Pires – Também. Essa construção conservadora não é apenas do passado. Vai ser reforçada por toda a mídia brasileira. Essa formação no Paraná é conservadora.
BP – E existem números sobre quantas pessoas tiveram direitos cassados e ou foram presas pela repressão no Paraná?
Narciso Pires – No Paraná são quatro mil pessoas presas, aproximadamente. Dessas, mais de mil pessoas torturadas. Você tem os números.
BP – Foi muito mais amplo do que se pensa, então?
Silvia Calciolari – Muito mais.
Narciso Pires – As pessoas não têm ideia. Elas acham, por exemplo, que aquilo foi uma coisa que passou. Com o processo da ditadura você tem um refluxo de todo o processo de informação. A repressão em si não é divulgada. E as pessoas não têm outra fonte de informação que não os jornais e rádios. E a partir do momento em que isso não existia…Então o que não estava sendo divulgado, não estava acontecendo.
Repressão
“Só no campo foram 1.100 assassinados”
Bem Paraná – Algumas pessoas relativizam a ditadura militar no Brasil. Há até o caso de um editorial do jornal Folha de SP que cunhou o termo “ditabranda” para definir o período. A luz do que vocês viveram, e levantaram nesse trabalho, o que acham disso?
Narciso Pires – Em primeiro lugar, tem que perceber o seguinte, quando você trabalha o viés da ditadura militar pela relação dos direitos humanos e principalmente da classe média, você tem números assim: 500 mil pessoas perseguidas, 50 mil presas, 20 mil torturadas. Basicamente essas torturas são de classe média. Agora quando você começa – e é isso que a Comissão da Verdade vai trazer de novidade – só no campo foram assassinadas durante a ditadura militar, 1.100 pessoas. Milhares de indígenas foram mortos na ocupação da Amazônia. Na implantação da Itaipu. Não há nada de extraordinário. Ela (a ditadura) não faz muito mais do que já não era feito. Se pegar os 500 anos, toda a ocupação de terra no Brasil. Norte do Paraná, companhia Melhoramentos. Onde estavam os povos indígenas que ocupavam essas regiões? Os chetás, por exemplo, como forma extintos. Eu me criei em uma cidade chamada São Jerônimo da Serra até os sete anos de idade. Me criei com história de caças aos bugres. Falava-se em caçadas a bugradas como se falava de caçada de macaco, onça. Os povos indígenas foram sendo extintos como se não fossem gente.
Silvia Calciolari – Todo esse ‘know-how’ de perseguição, vigilância e genocídio que se fez contra os escravos, índios, faz parte da cultura de um Estado. Todas essas técnicas foram utilizadas contra os presos políticos. Tanto é que antes se fazia isso com ladrão de carro. Nossa polícia é militarizada na sua essência. Tanto é que os presos políticos acabaram, mas a tortura não acabou. Sobre a ‘ditabranda’, para quem não foi perseguido, pode até ser branda. Mas para quem teve os agentes em seu encalço, foi preso, torturado, é ditadura.
Narciso Pires – Ditabranda? Eu fui sequestrado. Aliás, antes de eu ser sequestrado, sequestraram meu irmão, torturaram meu irmão uma noite inteira. Tanto que não tem nada na ficha dele. Nem militante era. Com o único objetivo de dizer onde eu estava. E com um recadinho: ‘ou ele aparece, ou o pai, a mãe, o irmão, outros serão também presos e torturados’. Eu fui preso em Apucarana. Me entreguei em um escritório de advocacia. O Exército foi me buscar. A primeira coisa que fizeram quando eu entrei no carro foi colocar algemas e vendar os olhos. Me levaram para um local clandestino. Eu já tinha ficado preso anteriormente em um quartel do Exército em Apucarana. E fui torturado a noite inteira naquele quartel. No dia seguinte me transferiram com os olhos vendados para Curitiba. E fui jogado aqui no centro de tortura do Doi-Codi, do Exército brasileiro. Passei uma semana nesse local sendo torturado. Que ditabranda? (Antônio de) Três Reis foi assassinado em Apucarana. Outros foram assassinados. Sabe. Nós estamos vendo hoje inclusive. Nós trabalhamos sempre com a estatística de cerca de 400 assassinados. Hoje esses números estão se modificando.
BP – Ou seja, a comparação que se faz com a Argentina e o Chile para se dizer que a ditadura no Brasil foi mais “branda” é descabida?
Narciso Pires – É. O que ocorre é o seguinte. Você tem uma reação na Argentina, são 30 mil mortos. Proporcionalmente é evidente. Você tem, por exemplo, na Segunda Guerra Mundial, a invasão na União Soviética, com 27 milhões de mortos. A invasão da Polônia com seis milhões de mortos. E daí?
Silvia Calciolari – Qual a diferença?
Esquerda
“Sabíamos na época que éramos isolados”
Bem Paraná – Os defensores do golpe de 64 argumentam que os militantes de esquerda que lutavam contra a ditadura não queriam a democracia, mas sim instalar uma ditadura de esquerda no País. O que vocês acham disso?
Narciso Pires – Isso é de uma extremada ignorância. Antes do golpe você tinha praticamente quatro correntes de esquerda no Brasil. O Partido Comunista Brasileiro (PCB), o Partido Comunista do Brasil (PCdoB), a Política Operária (Polop) e a Ação Popular (AP). Todas as quatro organizações, nenhuma propõe a implantação do comunismo no Brasil. Todas elas propõem a revolução democrático-burguesa. O que significa as reformas dentro do sistema capitalista. Nenhuma propõe a ditadura do proletariado. Pelo contrário, o PCB vai persistir após o golpe contra a luta armada. Em 1966, exatamente por essa postura do partido não aderir à luta armada, vai haver um racha no congresso do partido, principalmente a sua juventude, ansiosa por uma reação mais presente contra a ditadura.
BP – Vocês não acham que a esquerda foi ingênua?
Narciso Pires – É muito fácil para nós hoje, com o tempo passado, distante, olharmos aquele período e concluirmos isso. Mas para quem estava olhando não o todo, mas a parte, é muito complicado. Nós cometemos muitos erros, é claro. Mas só é possível acertar a partir do momento em que você comete erros. Não tem como prever.
Silvia Calciolari – Nós entrevistamos muitas pessoas, e claro, elas sabiam da força do Estado, dos perigos, das técnicas. Eles tinham uma crença de que era preciso lutar para conseguir as liberdades. Eles faziam tudo aquilo que a gente sabe, dos aparelhos, dos encontros, as estratégias de sobrevivência. Eles falam que iam lutar, primeiro pela anistia.
Narciso Pires – Nós sabíamos na época que éramos isolados, poucos. Sempre tivemos a percepção de que uma caminhada começa pelos primeiros passos. Era um processo em construção. Não se trata de ser ingênuo. Sabíamos que cometeríamos muitos erros, e cometemos. Mas que poderíamos ter a possibilidade de acertar. E que os próprios acertos seriam decorrentes dos erros cometidos.
BP– Como vocês vêem o debate sobre a revisão da lei da anistia e a reabertura de investigações sobre crimes praticados pela ditadura?
Narciso Pires – As decisões do Supremo Tribunal Federal são eminentemente políticas, não são jurídicas. Até as argumentações para justificar a anistia aos torturadores é uma construção absurda. Então se procura revisar hoje porque a comunidade internacional não aceita. A lei da anistia é construída em um momento em que os que estavam no poder tinham o controle absoluto, resultado do “Pacote de Abril de 1977”.
Descoberta
“Temos a história contada pela ditadura”
Bem Paraná – Mesmo sob o aspecto dos números, nós não temos um conhecimento mais preciso do que aconteceu. A história da ditadura no Brasil ainda está muito mal contada?
Silvia Calciolari – Nós temos essa memória ainda enrustida, embrulada em uma versão oficial de que eles estavam cumprindo um dever. Ela não foi contada ainda. Ela começou a ser desembrulhada ainda.
Narciso Pires – Na verdade, porque que a história não é contada. A história do genocídio indígena não é contada. Tanto não é que as pessoas não tem ideia de que as estimativas mostram que aqui no Brasil tínhamos de 3 a 5 milhões de indígenas, 400 povos diferentes, as pessoas ficam surpresas porque achavam que aqui não tinha população. Era um deserto. Que os portugueses descobriram o Brasil e o povoaram. Não existe essa memória da ditadura porque nós estamos reconstruindo esse processo.
BP – Essa falta de memória explica porque setores, 50 anos depois, pedem a volta dos militares?
Narciso Pires – Claro. E não é só isso. Mesmo quando a classe trabalhadora, a duras penas, conquista um direito, com o tempo a própria classe dominante que foi obrigada a fazer a concessão, transforma aquela concessão em um ‘ato de sua vontade’, concedido pela sua benevolência, não como resultado de um processo de luta. Porque a memória é uma disputa ideológica. Porque se a classe trabalhadora, os oprimidos desse País e do mundo descobrirem um dia que cada conquista foi resultado de muito sangue, de muitas lágrimas e de muito suor, ela vai saber que para mudar precisa se unir, se organizar, se mobilizar. Por isso a mémória é um processo em disputa. Até agora nós tivemos praticamente a história contada pela ditadura. Foi a nossa resistênciaque veio mudando isso.
BP – A tortura continua sendo uma prática comum nas prisões brasileiras. Até que ponto a ditadura foi responsável pela disseminação dessa cultura?
Silvia Calciolari – A tortura – há uma frase do Sartre que diz que ela não é civil, nem militar. É uma praga da civilização. Uma disputa pelo poder. O poder do Estado sobre o cidadão, do pai sobre o filho, do marido sobre a mulher. Isso tudo é tortura também. O assédio moral, sexual. Tudo isso está dentro dos arranjos sociais. Pode ser ditadura de esquerda ou de direita. Nada justifica você tirar a condição humana do outro.
Narciso Pires – A diferença da tortura na ditadura militar e hoje é que a tortura durante a ditadura era uma política de Estado e hoje não. Mas continua sendo uma política dos órgãos de repressão, porque é uma prática cultural. O que foram os 400 anos de escravidão no Brasil. A submissão pela tortura. Ou pela violência extremada.
Fonte- Ivan Santos/Bem Paraná
Publicado originalmente em http://www.bemparana.com.br/noticia/331390/memoria-e-uma-disputa-ideologica-dizem-autores-de-livro-sobre-a-ditadura
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