Por Paulo de Tarso Riccordi
“Tenho uma história para contar. A história de um anel de latão com uma pedra azulada, comprado de um artesão em uma calçada qualquer no final dos anos 60, e que viajou de Porto Alegre para o Chile, do Chile para a França, da França para Portugal, de Portugal para São Paulo, de São Paulo para Diadema, de Diadema para Presidente Venceslau, de Presidente Venceslau para Presidente Prudente e de lá retornou a São Paulo. E então, 42 anos depois, pelo mais absoluto acaso, voltou para as mãos do dono, em Porto Alegre.
Quem o repatriou, em menina o tirava dos dedos do pai, para brincar, misturado a um monte de bijuterias da mãe, que lhes escorregavam dos dedinhos. Um objeto familiar, cujo único significado parecia exata e exclusivamente algo com um valor afetivo especial de que o pai raramente se desligava e que, ao longo da vida, evocava isso mesmo: o pai e seu quase inseparável e estranho anel, evidentemente “feminino”. Revirando fotos antigas de um quarto de século, ela encontra imagens do pai no trabalho, com o anel comunzinho no dedo anular. Se procurar mais, se verá, bebê ainda, ao colo do pai, e o anel lá, com eles. Coisa mais familiar esse objeto, muito mais antigo que a menina, no dedo do pai desde sempre, eventualmente no da mãe. Até ela descobrir que o anel não era do pai e que por ele seria encarregada de devolvê-lo ao verdadeiro dono.
Quase por acaso o dono do anel emergiu do passado.
Em 2013, a menina já era jornalista, mestra em Comunicação aprovada para o Doutorado e estava escrevendo o projeto de um documentário sobre o exílio político do pai, Enio Bucchioni, nos anos 60 e 70. Xenya, chama-se ela, entrevistava o pai e chamou-lhe a atenção o fato de que ele só falava de amigos e companheiros de classe média, estudantes, intelectuais.
– Mas não havia operários no exílio?
– Raros. Um dos poucos que estavam lá era um gaúcho, Dirceu Messias. Mas não sei dele.
E ficaria nisso, se ela não abrisse um novo veio para o garimpo da história. Ao pesquisar na internet em busca daquele nome, coincidentemente chegou à única referência que havia a ele na rede: a postagem do blog do Comitê Carlos De Ré da Verdade e Justiça [http://migre.me/racwj] noticiando que em 7 de setembro de 2013 ele fora barrado no aeroporto de Santiago e devolvido ao Brasil, quando pretendia visitar o Chile, acompanhando a delegação brasileira, para os eventos de descomemoração dos 40 anos do golpe militar que derrubou o presidente constitucional Salvador Allende. Messias deveria prestar seu depoimento ao Museo Nacional de La Memória sobre os assassinatos e demais violações aos direitos humanos que presenciou de 13 de setembro a 24 de dezembro de 1973, quando esteve preso no Ginásio do Chile e no Estádio Nacional – o mais importante campo de futebol do Chile –, transformados nos piores campos de concentração do continente, após o golpe.
No Ginásio a maioria dos presos ficava no centro, na quadra polivalente. E alguns outros, considerados dirigentes comunistas ou socialistas, ficavam na arquibancada superior, um mezanino, como Víctor Jara, que lá seria assassinado. Messias ficou com “os perigosos”.
Numa manhã desesperadora de setembro de 1973, ele foi levado ao mictório do Ginásio. Então, se cruzam os dois jovens que, depois disso, não voltaram a se encontrar. Um, de 25 anos, estudante de Matemática na Universidade do Chile, no Brasil trocara a engenharia, na Faculdade de Engenharia Industrial-FEI, onde fora diretor do Centro Acadêmico, pela combinação de Matemática e Ciências Sociais, na USP, já então, militando na Ação Popular. Fugindo com a namorada da temível Operação Bandeirantes (Oban), exilaram-se em Santiago, onde participara da fundação do agrupamento trotskista Ponto de Partida.
O outro, o magrinho ensanguentado, voz mansa e o nariz adunco que lhe valeu o apelido de Turco, operário na metalúrgica (maestranza) Jemo, tinha 32 anos. Em comum, o fato de serem brasileiros fugidos dos militares de seu país, sequestrados pelos chilenos, que nas horas seguintes ao golpe de Estado passavam pente fino de fábrica em fábrica, faculdade por faculdade, comunidades populares, apresando suspeitos aos milhares, arrastando-os para o Ginásio do Chile, para o Estádio Nacional, para delegacias de polícia e quartéis. Muitos desses foram mortos nas primeiras horas e dias do golpe, sob tortura ou fuzilamento sumário, tão logo fossem identificados como líderes de qualquer coisa associada, ainda que remotamente, a organizações de esquerda.
O magrinho chegara ao banheiro do Ginásio arrastado, seria mais exato dizer. Sangrava como um atropelado, por fora e por dentro, no corpo e na alma, abandonado ao próprio azar em meio ao golpe militar. Há dias levava muita pancada de vários homens vestidos com o mesmo uniforme dos que agora o acompanhavam ao mictório, depois de ter sido identificado por um policial brasileiro em colaboração com os chilenos: esse Messias era militante do Partido Operário Comunista (POC), fugido do Brasil. Começaram então as sessões de tortura com pancadas e choques elétricos.
De Messias queriam arrancar informações sobre a localização das armas que poderiam ser usadas contra os vencedores de então, comandados pelo general Augusto Pinochet. Dirceu Messias fora preso por militares na invasão da metalúrgica Jemo, no bairro de Conchalí, onde trabalhava. Em Porto Alegre era militante operário (primeiro, do Partido Comunista Brasileiro, depois, do POC) e trabalhava na Companhia Estadual de Energia Elétrica. De lá, fugiu para o Espírito Santo, onde teve um bar em Vitória, até ser identificado pela polícia e novamente ter de fugir, via Uruguai e Argentina, para o Chile, onde o socialista Salvador Allende fora eleito presidente da República.
Do paulista Enio Bucchioni a polícia não tinha muitas informações. Dizia estar no Chile apenas para estudar, apresentava documentos de aluno da Faculdade de Matemática da Universidade Nacional, o que, depois, seria confirmado pelo reitor.
Enio olhou para o recém chegado, o rosto transformado numa pasta de hematomas e sangue.
– Acho que vão me matar”, disse o outro.
Ao encontrar no blog do Comitê Carlos De Ré a única referência a Dirceu Messias na internet, Xenya surpreendeu-se novamente. Ao pé da notícia de que ele não fora autorizado a entrar no Chile 40 anos depois de sua expulsão, estava também postado um comentário de seu pai, que pedia ajuda para comunicar-se com Messias e relatava aquele último encontro que tiveram, no banheiro do Ginásio do Chile:
“Dirceu estava muito mal fisicamente. Eu tive mais sorte, pois ‘apenas’ um soldado que me prendeu cortou levemente minha perna com a ponta de sua baioneta. Foi um corte superficial, com o tempo, cicatrizou. Ao ver Dirceu naquele estado crítico, com vários soldados perto de nós, apenas apertei sua mão e lhe disse: ‘Aguente firme, amigo!’
Vi que Dirceu se emocionou e ele me passou um anel que ele usava em seu dedo e me disse: ‘Fica com ele, amigo’. Entendi que Dirceu pensava na possibilidade de ser morto. Ao me dar seu anel, entendi que deveria levar esse anel para sua família, caso ele morresse.
Nunca mais nos vimos. Fui expulso para a França e Dirceu para a Suécia. Tenho, entretanto, o anel de Dirceu até hoje comigo. Eu o usei durante muitos e muitos anos.”
Xenya teve uma intuição: “O anel! Só pode ser o anel!”, o anel com que brincava na primeira infância. Era. O pai o confirmou.
Sem jamais terem se cruzado novamente, nem no ginásio, nem no estádio, “era muita gente”, foram expulsos para países diferentes, tiveram vários endereços, retornaram ao Brasil em momentos diversos e a vida voltou a mantê-los distantes, mas com essa pendência que acabou por reatá-los agora – havia o anel entre eles. Um anel tão frágil, uma pequena tira de latão acobreado, já com sucessivas marcas de amassamentos e desamassamentos, com uma grande pedra azulada, passado furtivamente da mão de um para a do outro num encontro de brevíssimos minutos, muito pouco, diante da eternidade do trimestre de dor física, sofrimento psicológico, medo, insegurança, e do testemunho forçado das centenas de mortes diante deles.
Entretanto, esse pedaço de lata enfeitada, a história pessoal de homens vizinhos dos 70 anos e a memória afetiva de uma menina feita pesquisadora mantiveram “no ar” esse vínculo, à espera de sua resignificação – a própria troca de dedos, a volta do anel a quem o comprara, em Porto Alegre, há quase meio século.
No domingo, 9 de agosto de 2015, Xenya Bucchioni devolveu a Dirceu Messias o anel do qual o pai a fizera portadora. Ele o segurou por um largo tempo, em silêncio. Muitas lembranças lhe brotaram. Depois, o repôs no dedo anular.
Há 42 anos deveria ter sido entregue à sua família, como indicação de que fora morto. Não morreu; o anel retornou a ele. Mas como teria sido um testemunho dos horrores daqueles anos pesados, Messias decidiu que irá doá-lo ao Museo Nacional de La Memória, em Santiago, como outros objetos que lá estão para não nos esqueçamos e para que não se repita.
Paulo de Tarso Riccordi
13/08/2015
50 Histórias do Golpe – Dirceu Messias (história 17)
Leia também: Comitê Carlos de Ré:
VAMOS AO CHILE?
Dirceu Messias barrado no aeroporto de Santiago do Chile
Víctor Jara, músico, cantor, compositor, poeta, professor de Jornalismo, diretor de teatro. Antes de seu assassinato, a 16 de setembro, os torturadores lhe esmagaram as mãos, provocando-o: “agora cante puerto mono, Puerto Mont” (música em homenagem aos mineiros massacrados naquela cidade). Contam que ele respondeu aos torturadores: “Idiotas, pensam que eu faço música com as mãos”. Após a redemocratização, o ginásio foi batizado de Ginário Víctor Jara.
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