‘Não há direito à verdade sem direito à justiça’, diz membro da Comissão da Verdade

'A questão determinante para o golpe foi o interesse dos Estados Unidos em que houvesse outro tipo de governo no Brasil' (Foto: Marcelo Camargo/ABr)

‘A questão determinante para o golpe foi o interesse dos Estados Unidos em que houvesse outro tipo de governo no Brasil’ (Foto: Marcelo Camargo/ABr)

Rosa Cardoso explica à RBA que primeiro ano de trabalho da CNV serviu para definir metodologias e construir consensos básicos no grupo: ‘vamos publicizar cada vez mais nossas investigações’

Por: Tadeu Breda, da Rede Brasil Atual

Publicado em 29/04/2013, 10:07

Última atualização às 10:38

‘A questão determinante para o golpe foi o interesse dos Estados Unidos em que houvesse outro tipo de governo no Brasil’ (Foto: Marcelo Camargo/ABr)

São Paulo – A Comissão Nacional da Verdade (CNV) chega à metade de sua trajetória no próximo 16 de maio com poucos resultados concretos, mas com a certeza de que não pode existir reparação da verdade histórica sem que haja justiça para as vítimas das graves violações aos direitos humanos cometidas durante a ditadura. E punição aos responsáveis.

“Nas sociedades civilizadas e democráticas, o direito à verdade é indissociável do direito à justiça”, explica Maria Rosa Cardoso da Cunha, advogada de presos políticos durante o regime e atualmente coordenadora-substituta da CNV. “Esse primeiro ano serviu para definir metodologias, compreender melhor a natureza do trabalho e despertar para a importância da relação entre verdade e justiça.”

Em entrevista à RBA, Rosa Cardoso afirma que o avanço das investigações tem feito com que a CNV reavalie permanentemente suas escolhas e prioridades. “Estamos reorientando nossos trabalhos.” O debate constante já acabou com pelo menos uma divergência interna: de acordo com a advogada, agora é consenso entre os membros do grupo que os fatos mais relevantes descobertos pela comissão devem ser constantemente divulgados.

“Assim funcionaram as comissões que tiveram sucesso em outros países”, lembra a advogada, dizendo que estão dirimidas as diferenças entre os membros que pregavam maior sigilo e os que defendiam divulgação permanente das revelações. “Hoje sabemos que não devemos apenas colher muitos depoimentos, mas também dar-lhes publicidade. Esse é um consenso bastante recente, que só foi possível após uma avaliação do que produzimos até agora e após termos conhecido mais de perto outras experiências, como a argentina.”

Golpe

Rosa Cardoso é responsável por três grupos de trabalho dentro da CNV. E fala que tem conseguido avançar bastante em alguns temas – por vezes contrariando as pesquisas acadêmicas já realizadas sobre o período ditatorial, por outras reforçando indícios que já existiam. No caso das pesquisas sobre “Contextualização, fundamentos e razões do Golpe Civil-Militar de 1964”, a advogada se permite atestar que a participação dos Estados Unidos na ascensão dos coronéis foi muito maior do que se acredita.

“Foi um golpe imperial”, classifica. “Washington teve participação fundamental na queda do presidente constitucional, João Goulart, e alguns membros da sociedade civil brasileira também.” Rosa Cardoso afirma que, até então, dava-se muita ênfase ao papel dos militares na conspiração. A advogada nega que a maior motivação dos coronéis tenha sido uma suposta quebra de hierarquia dentro das forças armadas e o momento de “ativação política” vivido pelo país nos anos 1960. “A questão determinante foi o interesse dos Estados Unidos para que houvesse outro tipo de governo no Brasil.”

Daí que a participação do que Rosa denomina “elemento civil” tenha sido essencial para o sucesso do golpe. Essa certeza transformou as prioridades da CNV às vésperas de seu primeiro aniversário. “Entrou na ordem do dia agora a urgência de ouvir empresários.” Por isso, o grupo liderado pela advogada deve interrogar no final de maio o empresário Paulo Henrique Sawaya Filho, cujo nome foi encontrado no caderno que controlava a entrada e saída de pessoas no Departamento Estadual de Ordem Política e Social (Deops), braço da repressão em São Paulo.

Sawaya ainda teria participado da arrecadação de fundos para financiar o golpe em conjunto com Delfim Netto, que mais tarde se transformaria no guru econômico do regime. Delfim também deve ser ouvido pela CNV dentro dos próximos 40 dias. “Além de buscar recursos para a conspiração, foi uma figura muito representativa do governo ditatorial, definiu políticas públicas e assinou o Ato Institucional nº 5”, lembra Rosa Cardoso. “Seria importante que desse satisfações à sociedade brasileira.”

De acordo com a advogada, o ex-ministro da ditadura – hoje um dos maiores defensores da política econômica do governo do PT – será intimado a depor de uma maneira “muito polida, respeitosa e educada”. Caso não atenda o chamado da CNV, porém, Delfim poderá ser conduzido pela força ou então processado pelo Ministério Público por desobediência. “São os poderes que a lei nos dá”, pontua Rosa Cardoso. “Queremos que ele nos esclareça algumas questões relativas aos governos que se impuseram no país.”

Condor

A coordenadora-substituta da comissão também está encarregada das pesquisas sobre a Operação Condor, aliança clandestina entre as ditaduras sul-americanas para localização, sequestro e assassinato de perseguidos políticos. “Após uma viagem à Argentina, conseguimos 60 caixas de documentos com informações sobre a participação brasileira no convênio. Agora estamos aguardando a chegada desses arquivos”, conta. “Também estamos com pesquisadores trabalhando nos Arquivos do Terror, no Paraguai, levantando mais evidências sobre a Operação Condor.”

Apesar do longo caminho que ainda irá percorrer, o grupo já se sente confortável para afirmar que a ditadura brasileira foi protagonista na Operação Condor. “Estudos acadêmicos costumam dizer que o Brasil não foi tão importante na articulação internacional sul-americana, porque, quando a Condor foi oficialmente constituída, em 1975, o país já se encaminhava para a redemocratização”, contextualiza. “Mas sabemos que a preparação dos operativos, o apoio, a formação dos militares dos regimes vizinhos em solo brasileiro foram muito significativos para o funcionamento do acordo. A participação do Brasil foi discreta, mas efetiva.”

Outra certeza adquirida por Rosa Cardoso neste primeiro ano de trabalho na CNV diz respeito à tortura. “Os métodos violentos de interrogatório não se implantaram somente depois do AI-5, como muita gente defende”, explica. “É uma constatação que fazemos a partir da violência massiva que foi praticada desde os primeiros momentos do golpe. Houve prisões em estádios de futebol e navios da Marinha, como ocorreu em Niterói (RJ), Santos (SP) e Recife (PE), num número muito maior do que se imaginava, sempre com imposição de tortura.”

Os seis membros em exercício na CNV manterão encontro com a presidenta da república às vésperas do dia 16 de maio, em Brasília. Na ocasião, apresentarão a Dilma Rousseff os resultados do primeiro ano de trabalho. Também deverão discutir quê atitude tomar em relação ao ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Gilson Dipp, que faz parte do grupo mas está afastado há mais de sete meses por razões de saúde. Só depois da reunião com a presidenta é que a CNV apresentará ao país seu relatório parcial.

 

Fonte: Rede Brasil Atrual

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