Reginaldo Benedito Dias*
Nas festas de Natal, quando a família se reunia, a mãe deixava aberta a porta principal da casa. Contra todas as evidências, mantinha a esperança de que um filho, que não dava notícias havia muito tempo, entrasse e comemorasse a data com os pais e os irmãos.
Essa não é uma fábula criada para ilustrar este artigo. Trata-se da vivência da mãe de um dos muitos opositores que o aparato repressivo da ditadura militar abateu nos chamados anos de chumbo. O corpo havia sido sepultado clandestinamente. Soube-se que a ordem era de que fosse “enterrado como um porco”.
Somente duas décadas depois, a família conseguiu localizar e identificar os restos mortais e promover um sepultamente digno, elaborando o fechamento do luto. Quase vinte anos depois do sepultamente, entretanto, a família ainda desconhece as reais condições em que ocorreu a morte, visto que os fatos foram visivelmente falsificados na época.
Esse é, resumidamente, o drama que viveu e ainda vive a família de Arno Preis, abatido em 1972. Quem quiser conhecer melhor o caso pode ter acesso, no Programa de Pós-Graduação de História da UEM, a uma dissertação de mestrado, desenvolvida sob minha orientação, de autoria da historiadora Elaine Bogo Pavani.
Casos assim ilustram muito bem a necessidade da Comissão Nacional da Verdade, recentemente instituída e nomeada pela Presidenta Dilma Roussef. Demonstram também porque pesquisadores do Departamento de História da UEM, reunidos no Laboratório de Estudos do Tempo Presente e Laboratório de Pesquisa em História Política e Movimentos Sociais, tomaram a iniciativa de articular um núcleo regional do Fórum Paranaense em Resgate da Verdade, da Memória e Justiça. No âmbito da UEM, a iniciativa teve adesão de pesquisadores do Departamento de Psicologia, das entidades estudantis e sindicais e apoio da Reitoria.
“ Trata-se de uma forma de engajamento em favor da cidadania e da construção de um país democrático” |
A Comissão Nacional da Verdade é uma demanda antiga da sociedade brasileira. O debate sobre as mortes e desaparecimentos políticos ocorridos durante a ditadura militar foi impulsionado, na primeira metade da década de 1970, pela organização de grupos de familiares, interessados em denunciar a tortura ou o desaparecimento de seus entes queridos. Esse engajamento foi reforçado pela Comissão de Justiça e Paz da Igreja Católica e pela formação de organizações em favor da anistia. Em 1978, o I Congresso Brasileiro da Anistia consagrou o termo “desaparecidos” como referência aos “militantes políticos cuja prisão, sequestro ou morte não foram reconhecidos pelo governo”.
Entretanto, em vez de dar solução à pauta, a Lei da Anistia exigiu novos embates. Para os movimentos organizados em torno dessa bandeira, tal como a lei foi elaborada e promulgada, “a anistia política representou, na verdade, uma autoanistia para os envolvidos nas ações repressivas após o golpe de 1964”.
Sob impulso da ação dos movimentos de familiares, foi elaborado o Dossiê dos Mortos e Desaparecidos, publicado em 1984. Atualizado e reeditado, subsidiou o avanço da luta política, da legislação e dos direitos relacionados. Como o estado mantinha opacidade sobre os arquivos, a sociedade organizada demonstrou capacidade de ultrapassar certos limites. Exemplo emblemático foi o projeto “Brasil: nunca mais”, desenvolvido silenciosamente nas brechas do processo de abertura política.
Nessas décadas que separam a atual conjuntura do advento da Lei da Anistia, graças aos movimentos pelos direitos humanos e mobilização dos familiares e ex-militantes, algumas medidas alargaram a legislação. Um exemplo é a Lei nº140/95, por meio da qual o Estado finalmente reconheceu sua responsabilidade na morte de opositores políticos em período determinado (1961-1979). Persistem, não obstante, muitos obstáculos à busca da verdade. Daí a necessidade da ampla transparência dos arquivos do período, incluindo os militares.
Não devemos entender tais demandas como assuntos de família. Por um lado, incidem sobre o passivo das violações aos direitos humanos cometidas pelo Estado brasileiro no período da ditadura. Por outro, pautam temas relacionados ao esclarecimento de fatos históricos de nosso passado recente.
Nosso envolvimento é cidadão e acadêmico. Nossos laboratórios têm desenvolvido pesquisas relacionadas ao período, abordando casos como o citado no início e ainda a questão dos arquivos da repressão. Com espírito pluralista, assim como colegas de outras instituições, temos produzido conhecimento e elaborado reflexões sobre esse conjunto de temas. Pretendemos aprofundar esse vínculo e participar do debate. Entendemos que se trata de uma forma de engajamento em favor da cidadania e da construção de um país democrático. É a nossa história! É o nosso País!
*Professor do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em História
Doutor em História e Sociedade pela Unesp – Assis
Fonte-INFORMATIVO UEM ANO XXII, – n. 1005, 20 de junho de 2012
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