Ex-presos políticos relatam horrores do Doi-Codi
Antonio Carlos Fon, Clóves de Castro e Rose Nogueira.
Companheiras/os,
Turbilhões de lembranças que por décadas ficaram sepultadas. Não sei se o concreto do esquecimento foi ato de defesa para não enlouquecer, ou, para amenizar um pouco os traumas que resultaram para toda nossa vida. Interessante ou trágico não sei, mas mesmo pessoas próximas, amigos queridos, sequer imaginavam o que eu havia vivido ou morrido. Não verbalizava. Verbalizar é lembrar e há lembranças que são tão traumáticas que realmente ficaram sepultadas por todas essas décadas.
Antonio Carlos Fon- Companheiro de escolhas e convicções, Companheiras/os que cumpriram o sagrado direito e dever de lutar contra uma ditadura que rasgou nossa Constituição, que pisoteou todas as liberdades democráticas. Como entendo quando você, Antonio Carlos, fala do “filme que se desenrola”, repassando toda nossa vida, são como relâmpagos que se redesenham naquelas semanas e meses trágicos. Naquele momento em que lhe contava que, nos poucos minutos em que não estava sendo torturada, ouvia os gritos de dor do Hélcio Pereira Fortes, naquele instante, também surgiram na minha memória, falas dos torturadores, dizendo que estavam empalando o Hélcio. O sentir é terrível. Depois fiquei esperando o momento em que eu também seria empalada.
E depois de décadas fiquei sabendo que no dia 28 de janeiro de 1972, foi divulgada, pela mídia falada e escrita, a morte do Companheiro Hélcio Pereira Fortes (Nelson, Fradinho) A verdade é que nesse dia, tanto Hélcio quanto eu fomos trazidos do DOI/CODI da Guanabara para o DOI/CODI de São Paulo, e, em algum documento meu, encontrei o dia e a hora de chegada à Oban: dia 28 de janeiro de 1972, às 16,00 horas. O lembrar é reviver, é tornar o sofrimento mais vívido, é abrir uma cicatriz e remexer na carne e no sangue. E quando você fica sabendo que um irmão do Helcio veio, de Minas para São Paulo em busca do seu corpo, e foi notificado de que o corpo já estava sepultado, e volta ele para Minas sem os restos mortais de seu irmão, o meu sentimento já não é nem mais de revolta, é algo que não consigo definir. E a verdade era que, ali, a poucos metros, o nosso Companheiro estava vivo ou quase vivo sendo barbaramente torturado. Revolta, realmente, é pouco para descrever o sentimento que se sente com o escárnio e a onipotência desses esbirros da ditadura. Revolta é o sentimento que te toma ao ver o total desprezo e desumanidade com que tratavam nossos pais, irmãos e familiares.
Ontem, enquanto passávamos pelo pátio do DOI/CODI, senti o sentimento de quando ouvíamos os festejos, o regozijo dos torturadores que prenderam a Ana Maria Nacinovic, o Iuri Xavier Pereira e o Marcos Nonato. Ali eles foram torturados. Não sei se os três estavam vivos, mas o Iuri com certeza caiu vivo. E, lá mesmo, a alguns metros das nossas celas, foram eles torturados e depois sumariamente executados.
E como não lembrar do Frederico Eduardo Mayr, a quem encontrei na Oban, ferido e ensanguentado, no banco do corredor, em frente ao escritório em que ficava o Vanderlei Boschilla. Depois ouvir os gritos do Companheiro Mayr, gritos que partiam lá das entranhas, porque os nossos gritos não saiam da garganta, saiam realmente das nossas entranhas, lá do fundo, não sei de onde.
Como não lembrar do Lauriberto Reyes, do Alexander Ibsen Voerões, do Napoleão Felipe Biscaldi. Sim, nos quase sete meses em que estive sequestrada no DOI/CODI, esses Companheiros foram levados para lá, alguns chegaram mortos, mas outros foram torturados antes da execução sumária.
E o Edgar de Aquino de pé, segurando as grades da cela, com aquele olhar meigo e um leve sorriso nos lábios, os cabelos compridos, e pensar que ele estava ali aguardando a hora em que seria morto ou “desaparecido”.
Sim, é toda nossa vida e a vida de tantos e tantos Companheiros, e isso tudo, querendo ou não aflora à nossa mente, flui como um filme de nossas vidas.
Como não lembrar do Luis José da Cunha, assassinado bem no dia do meu aniversário, como não lembrar das minhas lágrimas engolidas enquanto esses assassinos zombando, diziam que haviam pegado: “o filho da puta do seu amante”. E isso aconteceu em plena auditoria militar, onde estávamos convocados para uma audiência.
Terrível solidão, dor que sabíamos que poderíamos viver, mas inimaginável era o grau daquelas torturas realmente científicas. Como em sã consciência poderia se imaginar tal barbárie e sádicos rituais. Sós com a responsabilidade de mentir com fundamentos. Algumas derrotas, mas muitas vitórias. E depois disso tudo como podem falar, como se atrevem a falar em crimes conexos?
Darci Miyaki
—
Fonte:
– Vídeo CNV
– Texto Darci Myaki, a quem agradecemos a cessão do texto.
Siga-nos!