A ditadura militar brasileira, que teve forte participação de elites civis, foi imposta a partir de março de 1964. Contudo, somente em 2011, quarenta e sete anos depois, foi criada nossa Comissão Nacional da Verdade. Um ano após, em 16 de maio de 2012, a comissão foi instalada.
Comparando-se ou não nossa ditadura com outras latino-americanas instauradas na última metade do século, é oportuno perguntar porque a Comissão Nacional brasileira surgiu tão tardiamente.
Observadores da cena política nacional têm constatado que no Brasil persiste uma cultura de conciliação entre as elites e, simultaneamente, de violência e ressentimento com os subordinados. Nossa abertura democrática foi pactuada entre os militares e elites partidárias consideradas pelos mesmos confiáveis, na perspectiva da implantação de uma democracia administrada. É certo que a campanha por eleições diretas, a Constituição de 1988 e outras lutas populares e partidárias frustraram o modelo a ser imposto. Antes disto, entretanto, os militares, articulados com a mais alta corte judicial do país, o Supremo Tribunal Federal, fizeram aprovar uma lei de auto anistia, vigente até o presente.
Além da cultura de conciliação, a extrema desigualdade da sociedade brasileira, (que tem importante raiz no analfabetismo de nossa população, em especial no analfabetismo dos negros e do Brasil do Norte/Nordeste), excluiu do debate dos direitos civis e das graves violações de direitos humanos uma extensa camada de pobres e miseráveis, que por si ou por seus representantes, afirmava-se mais preocupada com reivindicações materiais relacionadas à sobrevivência.
Registre-se que as imensas desigualdades sociais são a marca da sociedade brasileira: em 1989 o Banco Mundial informava que o Brasil era o país mais desigual do mundo, utilizando-se o índice de Gini. Em 2012, no ano passado, ainda era o terceiro mais desigual. Segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA a desigualdade cresceu entre 1990 e 1998, exatamente quando estava em curso a fase inicial de nossa transição para um regime democrático e seria relevante a constituição de uma Comissão Nacional da Verdade.
Neste momento de nossa transição para a democracia o Brasil exibiu baixas taxas de crescimento econômico, inflação exasperada, retração da indústria e políticas que determinaram desemprego para a classe trabalhadora. Foram implementados planos econômicos como o Cruzado(1986), o Collor(1990), o Real(1994), abriu-se a economia ao mercado externo, realizou-se uma reforma do aparelho do Estado, houve privatizações de empresas etc. Nesta conjuntura a discussão sobre direitos humanos e graves violações foi também adiada pelas elites e pela sociedade civil.
A Comissão
Instalada em 16 de maio de 2012 pela Presidente Dilma Roussef a Comissão Nacional da Verdade teve, primordialmente, como força propulsora a vontade e a reivindicação de vítimas e familiares, que tenaz e incansavelmente, promoveram a luta para encontrar os despojos de seus mortos e desaparecidos, bem como esclarecer e denunciar a autoria e as circunstâncias das graves violações que sofreram.
Seguidamente, houve a necessidade de o Estado brasileiro, inserido numa estrutura de cooperação internacional e regional, visando segurança, desenvolvimento, progresso e paz, cumprir as regras ditadas pelo direito humanitário internacional e pelo direito internacional dos direitos humanos, ao qual o Brasil aderiu por meio de diferentes tratados internacionais e interamericanos. Mediante esta adesão reconheceria, então, o direito a uma justiça de transição e, especificamente, o direito à verdade.
Apesar de ser vítima e sobrevivente de nossa última ditadura a Presidente moveu-se pragmaticamente ao instalar a CNV: reconheceu que a normativa internacional a obrigava a materializar no país o direito à verdade e que a correlação de forças políticas permitia, em 2012, a constituição de uma Comissão Nacional da Verdade.
A Comissão da Verdade brasileira resulta de um processo internacional de judicialização das políticas de transição de regime, onde cortes internacionais afirmaram reiteradamente os direitos à memória, à verdade, à reparação e à justiça das vítimas de graves violações de direitos humanos, bem como o direito das próprias sociedades de constituírem estas políticas de transição.
Na América Latina a Corte Interamericana de Direitos Humanos tem tido um papel proeminente com o ajuizamento de diferentes casos e, entre eles, o caso Gomes Lund x Brasil, no qual vinte e dois familiares de desaparecidos políticos solicitaram que se julgasse e condenasse o Estado Brasileiro a prestar contas sobre o desaparecimento de 70 vítimas de sua ação repressiva, na designada guerrilha do Araguaia, e a punir os agentes envolvidos na ação.
Em 24 de novembro de 2010 o Estado Brasileiro foi condenado pelo caso Gomes Lund, conhecido como o caso do Araguaia. Na sentença a Corte determinou não somente a busca dos desaparecidos, ou de seus restos mortais, a publicação de informações e o julgamento dos responsáveis pelos crimes de lesa-humanidade cometidos, mas também idênticas providências em relação a todas as graves violações de direitos humanos ocorridas durante o regime militar.
São, ainda, antecedentes relevantes na instalação de nossa Comissão da Verdade as discussões, planos e comissões reivindicadas pela ação das vítimas, familiares e militantes de direitos humanos no âmbito do Governo brasileiro e, particularmente, de seu Ministério da Justiça e da Secretaria de Direitos Humanos. Entre estes se destacam a elaboração do 3º Plano Nacional de Direitos Humanos (2009), a Comissão Especial para Mortos e Desaparecidos (Lei 9.140/95) e a Comissão da Anistia (Lei 10.559/2002).
Contudo, o mais importante antecedente da CNV foi o Projeto Brasil: Nunca Mais.
O Projeto Brasil: Nunca Mais foi idealizado e executado, clandestinamente, por representantes da alta hierarquia das religiões Católica, Protestante e Judaica, bem como por advogados que trabalhavam na Justiça Militar e suas equipes. Foi executado entre 1979 e 1985, durante o final da ditadura militar.
O Projeto consistiu em copiar e produzir relatórios e um livro designado “Brasil: Nunca Mais”, cujo objeto é um conjunto de quase mil páginas de processos judiciais contra presos políticos. Hoje o material encontra-se digitalizado, concretizando o Projeto Brasil: Nunca Mais Digital.
O Mandato e as competências da CNV
Conforme a Lei 12.528/2011, que instituiu a CNV, após ampla discussão no Congresso Nacional, o mandato de seus membros seria de 2 anos. Nesta oportunidade a Presidente já concordou com uma prorrogação de 6 meses. Contudo, esta prorrogação ainda não foi aprovada pelo Congresso Nacional. Quanto à competência temporal da CNV, esta se refere ao período que vai de 18 de setembro de 1946 a 5 de outubro de 1988.
Com relação a sua competência material a Comissão Nacional da Verdade tem como objetivos esclarecer os fatos e as circunstâncias das graves violações de direitos , promover o esclarecimento circunstanciado dos casos, de torturas, mortes, desaparecimentos forçados, ocultação de cadáveres e sua autoria, ainda que ocorridas no exterior, identificar e tornar públicos as estruturas, os locais, as instituições e as circunstâncias, encaminhar aos órgãos públicos competentes toda e qualquer informação obtida que possa auxiliar na localização e identificação de corpos e restos mortais de desaparecidos políticos, colaborar com todas as instâncias do poder público para apuração de violação de direitos humanos, recomendar a adoção de medidas e políticas públicas, promover, com base nos informes obtidos, a reconstrução da história e prestar “assistência às vítimas. A competência material da CNV tem foco, portanto, nas graves violações.
Ressalte-se, também, que a Comissão Nacional da Verdade não tem poderes para punir (incompetência que é comum em comissões da verdade), nem para indenizar pois no Brasil existe uma comissão específica com o fim de promover reparações materiais, a Comissão da Anistia.
Quanto ao perfil dos comissários, ou comissionados, a Presidente procurou formar uma Comissão representativa de diferentes forças e segmentos políticos e profissionais do país, em suas palavras, uma Comissão de Estado. A própria lei que criava a Comissão, exigia que seus membros fossem brasileiros identificados com a defesa da democracia e da institucionalidade constitucional, bem como com o respeito aos direitos humanos.
Selecionou, então, a Presidente Dilma três membros articulados com a política e a máquina burocrática dos partidos de oposição (Paulo Sérgio Pinheiro, José Carlos Dias e José Paulo Cavalcanti), três membros afinados com a política do governo em curso (Claudio Fonteles, Maria Rita Kehl e Rosa Cardoso da Cunha),e um Ministro integrante do Superior Tribunal de Justiça, há muitos anos integrado ao Poder Judiciário, mas distanciado da militância política e partidária.
Ao mesmo tempo, apesar de uma dominante formação jurídica, estes membros tinham diferente inserção profissional: José Carlos Dias e Rosa Cardoso eram e são advogados e o foram de presos políticos nos tempos de ditadura (a última é também professora aposentada de uma universidade federal); José Paulo Cavalcanti é advogado de empresas e escritor; Paulo Sérgio Pinheiro é bacharel, professor da Universidade de São Paulo e representa o país no exterior em missões relacionadas a questões de direitos humanos; Gilson Dipp é Ministro e Vice-Presidente do Superior Tribunal de Justiça; Cláudio Fonteles é ex-Procurador da República e Maria Rita Kehl é jornalista e psicanalista.
No primeiro semestre de 2013 o ministro Gilson Dipp afastou-se da CNV por motivo de saúde. Posteriormente Cláudio Fontelles renunciou. Recentemente, desde 03 de setembro deste ano, passou a integrar a comissão o jurista Pedro Dallari, com formação em direito constitucional e internacional.
Note-se que a diferente extração política e idológica dos membros da CNV, além de expressar os valores do pluralismo, pretendia tornar mais verossímeis e menos contestadas as verdades por ela enunciadas. Entretanto, imporia uma difícil harmonização de perspectivas, ou como se convencionou chamar no âmbito da CNV, uma conciliação de metodologias entre os membros.
As atividades da CNV
A Comissão foi instalada sem que houvesse um período anterior dedicado a discussões sobre o conteúdo do mandato, sem a elaboração de um plano de trabalho ou a formação de uma equipe que pudesse assessorá-la adequadamente. Alguns dos membros se conheceram durante a cerimônia de posse. Sendo assim não houve algo como o nivelamento anterior do conhecimento de seus membros ou a capacitação prévia dos assessores.
Durante 6 meses a CNV esteve discutindo seu regimento e organização interna, a composição de sua assessoria, as parcerias a serem realizadas, o escopo de seu trabalho. O que se conseguiu gerar neste período foi um plano de organização interna, que criava no interior da comissão subcomissões e grupos temáticos de trabalho.
As Subcomissões criadas versavam sobre 1)“ Pesquisa, Geração e Sistematização de Informações”, dentro da qual situam-se os grupos de trabalho; 2) “Relações com a Sociedade Civil e Instituições”, onde deviam ser programadas e articuladas as Audiências Públicas e 3) “Subcomissão de Comunicação Externa”, onde foram construídas e são disponibilizadas diferentes ferramentas para o relacionamento com o público, ou seja, o sítio web institucional, a Ouvidoria da CNV e as redes sociais da CNV que permitem interação via facebook, twitter e You tube.
Quanto aos grupos temáticos, eles foram ampliados no curso do mandato dos comissionados e se referem a eventos políticos relacionados à repressão ou à resistência , a tipos de vítimas de violações de direitos ou ao funcionamento de órgãos ou de instituições sob o regime ditatorial. São, atualmente, treze: Araguaia; Contextualização, fundamentos e razões do Golpe Civil-Militar de 1964; Ditadura e gênero; Ditadura e sistema de Justiça; Ditadura e repressão aos trabalhadores e ao movimento sindical; Estrutura de repressão; Mortos e desaparecidos políticos; Graves violações de Direitos Humanos no campo e contra indígenas; Operação Condor; O Estado ditatorial-militar; Papel das igrejas durante a ditadura; Perseguição a militares; Violações de Direitos Humanos de brasileiros no exterior e de estrangeiros no Brasil.
Em abril de 2013, estes Grupos de Trabalho concluíram a atualização de seus respectivos cronogramas de trabalho. Recentemente, apresentaram resultados preliminares de pesquisa e das principais atividades desenvolvidas. Encontram-se, contudo, distantes de resultados conclusivos.
Relativamente à questão de dar voz às vítimas e testemunhas de violações de direitos, bem como ouvir perpetradores recorde-se que até esta oportunidade foram tomados 460 Depoimentos pela CNV, sendo 200 (43%) em sessões reservadas e 260 (57%) em sessões abertas ao público. Estes depoimentos foram contabilizados segundo as categorias de agentes públicos, colaboradores, vítimas civis, vítimas militares e testemunhas.
Registre-se, também, que neste primeiro ano de trabalho a assessoria da CNV foi integrada por 34 (trinta e quatro) assessores, entre ocupantes de cargos em comissão e servidores requisitados ou cedidos por outros órgãos da administração pública, 12 (doze) estagiários da Presidência da República e 7 (sete) consultores, que colaboram diretamente com a CNV e são financiados com recursos próprios de agência de cooperação internacional. Foram, ainda, contratados, até 1º de agosto de 2013, no âmbito de projeto de fomento à pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais, 23 (vinte e três) pesquisadores que integraram Grupos de Trabalho ou colaboraram com a CNV.
Expectativas da Sociedade Brasileira em relação ao trabalho da CNV
A criação da Comissão Nacional da Verdade emulou o surgimento de um expressivo número de comissões da verdade, tanto no âmbito do poder público quanto no da sociedade civil. Hoje temos notícia de que foram criadas aproximadamente 100 comissões, contando-se as estaduais, as municipais, as de entidades, centrais sindicais, sindicatos, universidades e as temáticas. Além disto se constituíram ou ativaram numerosos outros grupos, que adotaram a forma de comitês, coletivos ou fóruns, visando lutar por uma justiça de transição em que se concretizem os direitos à memória, à verdade e à justiça.
Em recente atividade de monitoramento das atividades da Comissão Nacional da Verdade uma ONG intitulada Instituto de Estudos da Religião- ISER, em projeto financiado pela Fundação Ford, identificou 35 grupos desta natureza em 27 Estados da Federação, alguns deles articulando vários subgrupos. O ISER relacionou, ainda, diferentes grupos constituídos nos Estados sob a designação de Tortura Nunca Mais , Núcleos de Pesquisa, ONGs, Comissões de Familiares, de Mortos e Desaparecidos Políticos e outras entidades que apresentavam trajetória na área de direitos humanos. Utilizando uma metodologia de trabalho que incluía a apresentação de sua pesquisa aos destinatários, bem como o uso de questionários, o Instituto pôde concluir que as expectativas deste público sobre o trabalho e funcionamento de nossa comissão da verdade eram as seguintes:
1) O esclarecimento público dos fatos;
2) A produção de Justiça, reparação, judicialização dos casos e responsabilização dos perpetradores de violações;
3) A contribuição para o debate público e a construção da história;
4) O desenvolvimento de um processo metodológico consistente da investigação;
5) Transformações na sociedade contemporânea.
Relativamente ao esclarecimento público dos fatos as análises das respostas apresentadas indicaram como questões fundamentais para a investigação e elucidação às atinentes aos mortos e desaparecidos políticos, às torturas, às circunstâncias e locais de ocultação de pessoas ou cadáveres, aos antecedentes do Golpe de 1964, à intervenção sobre a Amazônia, à Guerrilha do Araguaia, à estrutura fundiária, à violência estatal e à impunidade, à questão indígena e crimes seletivos contra lideranças, aos padrões de violações de direitos humanos e aos crimes da ditadura, a casos emblemáticos, ao período de 1964 a 1985, aos arquivos fechados, em especial, os das Forças Armadas que até o momento a sociedade não teve acesso.
Estas respostas não surpreendem: vítimas, familiares, militantes de direitos humanos, integrantes ou não dos coletivos mencionados, têm revelado grande convergência na priorização da investigação, discussão e esclarecimento público das designadas graves violações de direitos, havidas no Brasil. Eles as nominam textualmente ( mortes, desaparecimentos, torturas, ocultação de cadáveres) ou se referem aos eventos políticos, onde ocorreu o maior número de graves violações (Golpe de 1964, Guerrilha do Araguaia) ou ainda a problemas que ensejaram violência e impunidade dos perpetradores como a estrutura fundiária e a intervenção sobre a Amazônia. Há também demandas por aprofundar-se a caracterização da violência ditatorial, mediante a discussão de padrões de violações de direitos humanos, crimes da ditadura, e casos emblemáticos. Ou a reiteração de que o período fundamental a ser pesquisado é o situado entre 1964 e 1985, ou seja, o da ditadura. Ou finalmente que temos que buscar informações sobre as graves violações nos arquivos fechados das Forças Armadas. Insista-se em que o foco é sempre as graves violações.
Desafios da CNV
São realmente desafiadoras as tarefas e o aprendizado que a Comissão ainda precisa realizar para cumprir o mandato que a lei lhe atribui. Confrontam os membros da Comissão da Verdade diferentes tipos de desafios: questões de natureza operativa, de método, de gestão, de eficiência, de dedicação etc.
Nesta interlocução desejo, entretanto, destacar três tipos de desafios de natureza teórico-conceitual a respeito da verdade que buscamos. No fundamental, como salientei, a lei 12.528/2011 é uma norma que acompanha as concepções contemporâneas do direito internacional dos direitos humanos acerca do conceito do direito à verdade e, particularmente, do processo designado como Justiça de Transição.
Estas concepções alargaram o conceito de verdade no âmbito do processo de Justiça de Transição e as atribuições de uma comissão da verdade.
Hoje, estudos e recomendações da ONU e de outras comissões internacionais revelam que o direito à verdade se perfaz com o direito à memória e o direito à justiça. Afirmam também que o direito à verdade é inderrogável e imprescritível em relação a todas as graves violações de direitos humanos, que configuram crimes de lesa humanidade.
O exercício do direito à verdade reclama, ao mesmo tempo, integral acesso à informação, a abertura de arquivos secretos, a existência de uma investigação eficaz, o pormenorizado conhecimento das circunstâncias e local em que a violação ocorreu, a identificação e nomeação dos perpetradores das violências e sua responsabilização.
Como tem sido reiterado por normas e cortes internacionais as anistias e auto anistias não podem servir de anteparo à punição de crimes de guerra, genocídios e crimes contra a humanidade, como são os assassinatos, a tortura, os desaparecimento forçados e a ocultação de cadáveres praticadas no Brasil.
Sendo assim, o primeiro desafio a ser vencido pela CNV, na plenitude de seu colegiado, é alcançar um efetivo ajustamento às concepções internacionais hoje vigentes relativamente à compreensão do direito à verdade.
O segundo desafio é entender a relação que uma comissão da verdade deve ter com vítimas e familiares. Não basta lhes dar voz, é preciso ouvir a sua voz, ouvir a sua experiência, ouvir a interpretação da dor física e moral que sofreram. Comissões da verdade devem sempre contrastar a análise dos contextos históricos e sociológicos que promovem com a perspectiva das vítimas. Devem fazer com que dar voz e ouvir as vítimas não seja um enunciado retórico, concretizando este posicionamento em seu trabalho cotidiano.
Por fim, o terceiro desafio para nossa comissão da verdade é a relação com a sociedade civil, implicando em transparência e compreensão do caráter pedagógico de nosso trabalho. Neste caso a transparência tem várias dimensões e se aplica a situações diferenciadas, ou seja, refere-se a dar publicidade às discussões e atividades da CNV, a permitir seu acompanhamento pelos interessados, a disponibilizar registros escritos de seu trabalho ou dos depoimentos que recolhe etc.
Parece, contudo, que a transparência deve estar desde logo associada à compreensão do caráter coletivo que a produção da verdade deve ter numa Comissão da Verdade.
Comissões da Verdade funcionam em sociedades partidas, política e ideologicamente, e precisam obter reconhecimento sobre o valor de seu trabalho e dos resultados que alcancem. Precisam criar laços com os diferentes grupos sociais (estudantes, jovens, mulheres, trabalhadores) e, em especial, uma densa relação com os movimentos sociais e os grupos interessados em seu trabalho. Não sendo assim as recomendações ou políticas públicas que propuserem não terão repercussão nem possibilidade de serem implementadas.
Últimas Reflexões
Comissões da Verdade, em um mundo assolado por crises econômicas, em países que tenham grandes parcelas da população na miséria, com altos níveis de desigualdade social são necessárias? São primordiais na construção da vida em sociedade?
Respondo que sim. Se a existência de um regime democrático, com a garantia dos direitos de expressão, reivindicação, de luta por melhores condições de vida, por segurança em relação à integridade corporal e à vida forem relevantes, a existência de comissões de verdade é prioritária.
Elas devem apresentar ao público de um país e do planeta a tragédia que pode suceder em uma sociedade sem democracia. Por isso comissões da verdade devem focalizar e contar minuciosa e claramente as graves violações do direito à vida e à integridade física que sucedem em sociedades sem democracia. Devem contar a imposição da dor, física e moral, extremas que ocorre nestas sociedades.
Este quadro de juízo final, com assassinatos, choques, queimaduras, empalamentos, estupros, açoitamentos, pauladas, tem ocorrido nas ditaduras. Precisamos rememorar e denunciar este quadro. A sociedade precisa saber que isto e muito mais ocorreu em nossos países: no Chile, na Argentina, no Brasil, e que pode voltar a ocorrer.
A maioria da população tem horror à desordem e em situações críticas apoia a imposição de uma ordem autoritária. Comissões da Verdade em 2013 devem recordar o Holocausto que a imposição de uma ordem autoritária e ditatorial provoca e, principalmente, propor a discussão de políticas sociais que reforcem a construção da democracia.
Rio, 23 de outubro de 2013
Rosa Maria Cardoso da Cunha
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