Mônica Vasconcelos
Fonte: BBC Brasil em Londres
Atualizado em 7 de junho, 2013 – 09:23 (Brasília) 12:23 GMT
Publicado no Brasil em 2011, o livro K, do escritor e cientista político paulistano Bernardo Kucinski, já ganhou traduções em inglês, espanhol e catalão, e será publicado também em alemão e hebraico.
Obra de ficção, o livro é baseado nas histórias reais do pai do autor, Majer Kucinski – o personagem K -, um judeu polonês que fugiu do nazismo e foi viver no Brasil, e da irmã do escritor, Ana Rosa Kucinski Silva.
Militante política e professora de química da Universidade de São Paulo (USP), Ana Rosa foi sequestrada e morta por agentes a serviço do governo militar. Seu corpo jamais foi encontrado.
O ex-delegado do Dops Cláudio Guerra confirmou, em entrevista ao jornalista Alberto Dines, exibida em 2012 pelo programa de TV Observatório da Imprensa, que recebeu o corpo de Ana Rosa, que teria sido morta em sessão de tortura, para ser incinerado.
Em entrevistas à BBC Brasil, intelectuais e pessoas envolvidas na publicação de K no exterior disseram que o livro chama a atenção ao revelar para o mundo, em um relato comovente e envolvente, o drama humano por trás da realidade violenta da ditadura militar no Brasil.
Em um momento em que a Comissão da Verdade se esforça para recuperar a história desse período, o lançamento internacional também contribuiria para aumentar a pressão externa sobre o governo brasileiro para que tome providências e puna os culpados, disseram.
Bem x Mal
A versão alemã de K será lançada pela editora berlinense Transit durante a Feira do Livro de Frankfurt, que neste ano estará homenageando o Brasil.
Segundo o editor, Reiner Nitsche, o foco em temas brasileiros fez com que ele recebesse muitas ofertas de obras do país para publicação. Mas nenhuma chamou tanto sua atenção como K.
“Nunca associamos histórias de sequestros e desaparecimentos ao Brasil. Pensávamos que essas coisas só tinham acontecido na Argentina e no Chile”.
“Outro ponto importante é a conexão com a história alemã. K nasceu na Polônia na década de 30 e era ativo politicamente, combatendo o antissemitismo. Por isso, foi preso e mais tarde teve de fugir para o Brasil. Anos depois, sua irmã foi morta pelos nazistas.”
Para Nitsche, no entanto, a principal justificativa para a decisão de publicar a obra na Alemanha é a forma como o livro aborda a temática política.
Em K, a comovente busca do personagem central por sua filha é narrada de vários pontos de vista. O leitor habita a mente do pai desesperado, do informante, da amante do torturador, da faxineira que limpa a casa onde os prisioneiros são torturados e mortos, dos ex-colegas da desaparecida na universidade e dos militantes clandestinos que lutam contra a ditadura, entre outros.
“O tipo de verdade que você tem nessa história política é muito raro de encontrar”.
“Isso é muito novo e interessante para nós, porque você percebe que a ditadura é cruel mas os militantes também podem ser cruéis, seus métodos são similares”.
Nitsche faz referência a um capítulo em que um militante político critica seu próprio líder por não ter permitido que os integrantes do grupo questionassem suas ações.
“O que os militantes estavam fazendo era suicida e alguns perceberam isso, mas não tiveram permissão de questionar ou de abandonar a luta”, disse.
“Se você quiser mudar a cabeça das pessoas, tem de publicar livros como esse, não histórias de bonzinhos e malvados”, acrescentou o editor. “O livro mostra a crueldade terrível da ditadura militar. Mas no decorrer da história, K se dá conta de quantas pessoas estão colaborando com a ditadura. O padeiro, a imprensa, a comunidade judaica em São Paulo”.
Nitsche disse que já recebeu comentários positivos da imprensa alemã sobre K e espera que o livro cause algum impacto no período do lançamento, no final de agosto.
Instrumento Político
A visão cheia de nuances que o livro de Kucinski oferece também mereceu elogios de uma especialista em Justiça de Transição da Oxford University, a professora Leigh Payne.
Comentando o lançamento, em março último, da tradução inglesa na Grã-Bretanha, a especialista disse ter gostado muito da conexão entre a vida do pai, seu passado de luta contra a opressão, e a vida secreta da filha.
“Ele não sabia que a filha estava levando adiante a luta dele”.
“K é muito bom ao tentar mostrar que as vítimas da violência não eram necessariamente inocentes, mas também não eram uma ameaça”.
Para Payne, não há dúvida de que os militantes brasileiros não iam conseguir derrubar o regime. “Ainda assim, lutavam por igualdade e democracia e tinham uma visão patriótica do que o Brasil deveria ser”.
Segundo a especialista, um resultado positivo do lançamento internacional do livro é que ele pode funcionar como um instrumento de pressão por mudanças.
“A violência durante o governo militar no Brasil recebeu muito menos atenção internacional do que a ocorrida na Argentina ou no Chile e essa falta de interesse persiste hoje”.
A publicação de K fora do Brasil “é importante porque aumenta a consciência, no exterior, das violações aos direitos humanos ocorridas no Brasil durante a ditadura militar e faz crescer a pressão sobre o governo brasileiro para que faça algo a respeito”.
Payne lembrou que o governo brasileiro ainda não acatou a sentença, pela Corte Interamericana dos Direitos Humanos, em 2010, exigindo que o Brasil investigue e puna os responsáveis pelas mortes de militantes no Araguaia.
Dois Desaparecimentos
A versão de K em hebraico deve chegar às lojas israelenses no início do próximo ano pela editora Carmel.
O contato com a editora foi intermediado pelo historiador israelense Avraham Milgram, que vive em Israel e conheceu o pai de Bernardo Kucinski.
“Uma das razões do sucesso desse livro é que pessoas de diversas culturas, países e regimes se identificam com o drama desse pai, é um tema universal”.
Mas K tem para os judeus uma dimensão que talvez escape ao público europeu e brasileiro, explicou.
O pai da desaparecida, Majer Kucinski, escritor e poeta com livros publicados no Brasil e em Israel, era um típico judeu da Europa Oriental, onde floresceu a cultura iídiche. A maioria dos judeus mortos pelos nazistas pertencia a essa cultura.
“Em sua devoção a essa cultura perdida, que existiu durante 800 anos na Polônia e foi erradicada, Majer se alienou dos filhos”, disse o historiador. “Isso talvez tenha facilitado a escolha de Ana Rosa pelo caminho que seguiu”.
Filme
Cientistas políticos no Brasil se perguntam as razões do desinteresse dos brasileiros em relação à história da ditadura militar no país.
“K quase que chegou cedo demais”, disse Leigh Payne. Depois de anos estudando as políticas dos direitos humanos no Brasil e América Latina, ela acha que, para comover o público brasileiro, um livro como esse tem de vir junto com outras coisas:
Um trabalho sério e aprofundado da Comissão da Verdade, o resgate da imagem “negativa” das vítimas, mudanças no conceito de direitos humanos na sociedade brasileira e, quem sabe, algum sucesso nas tentativas de julgar os responsáveis pelos crimes.
Depois disso, “talvez, se alguém fizer um filme sobre o livro, com atores famosos nos papéis principais, os brasileiros irão ao cinema assisti-lo – e aí vão se comover e gostar muito”, concluiu a professora da Oxford University.
Bernardo Kucinski trabalhou na BBC Brasil (antigo Serviço Brasileiro da BBC) entre 1970 e 1974, período em que viveu em Londres.
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