“Operação Condor vai receber uma enorme atenção”, diz membro da Comissão da Verdade brasileira

Na primeira semana de setembro, os membros da CNV (Comissão Nacional da Verdade), instalada em março deste ano para apurar violações aos direitos humanos ocorridas entre 1946 e 1988, com destaque para o período da ditadura militar (1964-1985), participaram de um seminário em Brasília para debater e conhecer melhor as experiências de outras comissões da verdade nas Américas.

Um dos sete membros nomeados para a CNV pela presidenta Dilma Rousseff, Paulo Sérgio Pinheiro disse, em entrevista ao Opera Mundi, que um dos focos das investigações da comissão será a Operação Condor, a articulação entre os aparelhos repressores de Brasil, Argentina, Uruguai e Chile. “Na Operação Condor, o Brasil foi muito esperto, não deixou muitas marcas, não assinava acordos informais nesse sentido”, e por isso a cooperação com esses países será fundamental para conseguir informações, afirmou.

Doutor em Ciência Política pela Universidade de Paris, Pinheiro foi secretário de Estado de Direitos Humanos no governo Fernando Henrique Cardoso e integrou o grupo de trabalho nomeado pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva que preparou o projeto de lei da Comissão Nacional da Verdade.

Opera Mundi: O que a Comissão Nacional da Verdade no Brasil, que está iniciando seus trabalhos este ano, tem a aprender com outras experiências semelhantes na América Latina?
Paulo Sérgio Pinheiro: Primeiro, a nossa comissão é a primeira do século XXI, todas as anteriores foram no século XX. Em relação às mais antigas, como as de El Salvador, Guatemala e Argentina, muitas tecnologias e meios de difusão comuns atualmente, como internet, redes sociais, celular, telefone com câmera fotográfica, não existiam, então a nossa comissão fica em um outro patamar técnico.

É evidente que cada uma das 40 comissões de verdade que já existiram no mundo, desde os anos 1990, tem características próprias. O que une todas elas é essa questão do direito à memória e à construção de uma verdade que os regimes autoritários negaram ou se recusaram a enfrentar. Entre as experiências que nós debatemos nesse seminário, a de El Salvador e da Guatemala são muito específicas, porque elas foram realizadas por iniciativa da comunidade internacional e no pós-conflito, depois de guerras civis muito importantes. A do Peru também, porque era quase uma guerra civil entre o Sendero Luminoso e o governo ditatorial do [presidente Alberto] Fujimori.

Finalmente, a [comissão da verdade] mais próxima de nós é a do Paraguai, porque ela ocorre também depois de um longo período de ditadura, quase o dobro da nossa ditadura militar. Das experiências que nós debatemos, não só por ser mais próxima em termos temporais, mas também em termos do conteúdo, a do Paraguai é a mais próxima, também a do Uruguai guarda muitos pontos de contato. Nesse seminário, se discutiu mais sobre essas quatro comissões, Argentina, Guatemala, El Salvador e Peru, mas tratamos de outras também, como a experiência da África do Sul e a do Chile. Um ponto importante que queremos investigar é a colaboração entre os aparelhos repressivos de Brasil, Uruguai, Argentina e Chile para extermínio e prisão de militantes, a chamada Operação Condor.

OM: O que vocês pretendem aproveitar, dessas experiências, no trabalho da Comissão da Verdade no Brasil?
PSP: Por exemplo, experiências de audiências públicas, a confidencialidade nas investigações criminais, a importância das recomendações depois da publicação do relatório da comissão, a articulação com a universidade e com os diversos grupos da sociedade civil. Tudo isso foi muito interessante, especialmente porque as entidades que patrocinaram o seminário com o Ministério das Relações Exteriores, o Centro Internacional para Justiça de Transição, o Alto Comissariado das Nações Unidas para Direitos Humanos e o Instituto de Políticas Públicas em Direitos Humanos do Mercosul também não tratam só desses países que estavam mais presentes, mas do conjunto das experiências de comissões da verdade no continente.

OM: Além de Uruguai e Paraguai, as comissões da verdade na Argentina e no Chile também não se aproximam do trabalho que deve ser feito pela comissão brasileira, pois também foram criadas após ditaduras militares?
PSP: A da Argentina foi a primeira de todas, é a mãe das comissões da verdade. Na apuração e na publicação dos resultados, ela se aproxima muito. O que não se aproxima de nós é o momento atual chileno e argentino, onde está havendo uma responsabilização dos autores de violações dos direitos humanos. A nossa comissão tem o poder de documentar as autorias e as circunstâncias das violações, mas nós não somos um tribunal, aliás nesses países também não era um tribunal. O que ocorreu no Chile e na Argentina [em relação aos julgamentos] foi depois que os trabalhos das comissões terminaram.

OM: Tanto no Chile quanto na Argentina houve maior resistência inicial dos militares, que conseguiram garantir, em um primeiro momento, que os trabalhos das Comissões fossem limitados (a Comissão de 1991 no Chile tinha poderes muito limitados, e na Argentina os governos civis decretaram leis de anistia aos militares). No entanto, depois esses entraves foram revogados e os trabalhos de investigação, julgamento e punição dos agentes do Estado foram retomados e estão, ainda hoje, em andamento, certo?
PSP: Esses desenvolvimentos não estavam previstos nos relatórios [das comissões], porque os relatórios abrem um procresso dinâmico. Mas nós ainda nem fizemos o relatório, não me cabe fazer futurologia com o que vai acontecer depois. No momento, só estou preocupado com como nós vamos terminar o trabalho em 21 meses, porque três meses já se passaram.

OM: E em relação à decisão do STF (Supremo Tribunal Federal), no julgamento de 2010, de manter a constitucionalidade da Lei de Anistia? Não interfere?
PSP: Sim, completamente. Primeiro, porque nós não debatemos isso. Em segundo lugar, isso não ajuda nem atrapalha, porque a comissão não está sujeita às mesmas restrições jurisdicionais que o sistema judicial brasileiro está. Nós já temos poderes suficientes para trabalhar. O primeiro é que a comissão tem o poder de convocar qualquer cidadão ou cidadã brasileira para depor, se não vem, nós denunciamos ao Ministério Público Federal para abertura de um inquérito.

Em segundo lugar, nós temos acesso a qualquer documento que nós julgarmos relevante para nós. Para dar um exemplo, no Ministério das Relações Exteriores nós estamos tendo acesso a todos os documentos secretos, no Itamaraty não se queimou nenhum documento, há quatro toneladas de documentos que podemos examinar.

Em terceiro lugar, nós temos o poder de designar a autoria dos crimes que estão elencados na lei, por exemplo detenção arbitrária, desaparecimento forçado, tortura, aos agentes do Estado responsáveis por esse atos. Se nós vamos ou não nomear [a autoria de cada crime a uma determinada pessoa], esse é outro problema, mas nós temos mandato para investigar e concluir sobre a autoria desses crimes, o que hoje é uma coisa muito limitada no sistema judicial brasileiro, tem havido algumas ações, mas ainda é uma possibilidade muito limitada.

Essa questão de nomear ou não os crimes é sempre uma decisão para todas as comissões da verdade. Nós ainda não decidimos se vamos indicar os nomes, é algo que ainda será definido. A comissão do Chile, por exemplo, até hoje não publicou os nomes, várias comissões foram proibidas por seus mandatos de publicarem os nomes, o que não é o nosso caso. Essa é uma decisão que só iremos chegar em 2014, ainda está em aberto. Só quero frisar que nós não vamos julgar nem fazer uma denúncia ao Ministério Público, não vamos absolver nem condenar ninguém. Por isso que o julgamento do STF sobre a Lei da Anistia não nos diz respeito.

OM: Mas o senhor vê a possibilidade de as informações levantadas pela CNV serem usadas em ações na Justiça contra agentes da ditadura, embora esse não seja o objetivo da comissão?
PSP: Isso é pura especulação, atualmente não me interessa o que vão fazer com as informações que nós vamos levantar, isso é problema para o sistema judicial, para o Ministério Público, não tenho nada a ver com isso. Eu pessoalmente acho que esses julgamento que já estão ocorrendo são importantes, a comissão acompanha esses casos com interesse, mas isso é uma caminhada paralela, não é algo que está articulado com a CNV.

OM: O senhor mencionou antes a Operação Condor, a articulação entre os governos militares para a repressão. Qual a importância dessa investigação para o trabalho da CNV, isso será feito em cooperação com esses países?
PSP: Na Operação Condor, o Brasil foi muito esperto, não deixou muitas marcas, não assinava acordos informais nesse sentido. Há poucos dias morreu uma vítima da Operação Condor no Brasil, o Universindo Díaz, uruguaio que foi sequestrado em conluio entre os regimes do Uruguai e do Brasil. A Operação Condor vai receber uma enorme atenção, da mesma maneira a participação do Brasil em redes de espionagem sobre os exilados brasileiros e sobre os que retornavam ao país. Essa dimensão internacional vai receber um especial carinho da CNV. Não vou comentar em detalhes o que estamos fazendo, mas desde o segundo mês já estamos dedicados a levantar informações e documentos sobre isso.

OM: Como nesses casos a ditadura brasileira não deixou muitos rastros e documentos, a cooperação para conseguir informações com os governos desses países é importante?
PSP: Certamente, todas essas chancelarias estão sendo contatadas e tem demonstrado a melhor boa vontade e cooperação com a CNV, especificamente Paraguai, Uruguai, Chile e Argentina. Não temos dito nenhuma dificuldade com isso, pois todos esses países também passaram pelas suas comissões da verdade e têm arquivos muito bem organizados, onde as informações sobre os brasileiros estão muito presentes. Além disso, há outros países, que não vou nomear, que também têm informações sobre essa colaboração entre serviços de inteligência, dentro continente e também com alguns outros países de fora.

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